Desde os primórdios em que se constitui um ensinamento de Jesus Cristo enquanto tradição a ser levada, transmitida, interferem o meio, o homem pelos quais esta tradição se instituirá e se propagará. Roberto Pla na introdução de seu magistral estudo sobre o Evangelho de Tomé examina algo deste processo e das escolas que aí já se estabelecem.
É necessário se despertar, pelo menos em alguns, a consciência de que os textos canônicos neo testamentários se expressam de acordo com uma hermenêutica dual, por cuja exegese é possível, uma vez assimilada a leitura primeira que chamamos “manifesta”, afrontar uma segunda leitura, mais difícil de ser apreendida, para encontrar por ela um novo sentido que os hagiógrafos cristãos denominavam “oculto”, ou “secreto”.
A prática da hermenêutica dual exigiu dos escribas cristãos primitivos uma interpretação prévia do AT com um conhecimento dos procedimentos e escrituras postos em prática pelos soferim judeus desde o princípio. O propósito foi aplicar às grandes revelações proporcionadas por Jesus aquelas estruturas plurais da Bíblia. Para tal parece verossímil que tal como já se vem apontando por alguns investigadores atuais, se formaram diversas escolas de escribas paleo-cristãos.
- Dentre estes investigadores Roberto Pla cita: R. Le Déaut, K. Stendahl, Ch. Perrot, A. de Agua; W. Heit Müller, W. Bousset, A. Frididsen, C. H. Dodd, L. Alonso Schokel, M. Rose, H.-J. Schoeps.
Assim é como talvez seja possível distinguir entre os textos neotestamentários as formas expressivas peculiares da escola palestinense de Mateus, muito relacionada aparentemente com os métodos utilizados pela comunidade de Qumran; a escola talmúdica-midrásica de João, em Éfeso; a elaboração peculiar de Lucas, entranhada com os procedimentos de Paulo, e sobre tudo isto, a base hermenêutica geral proporcionada com agilidade surpreendente pelo trabalho construtivo de Marcos.
A linha oculta da hermenêutica cristã se refere essencialmente a Cristo, não só porque foi explicado como o Cristo preexistente, oculto, que subjaz no Cristo manifesto, senão porquanto Cristo, o Filho único, é a realidade, o tesouro oculto, um com o Pai, que a todo amador e buscador de Deus o toca manifestar como via de salvação.
Quando Mateus recompila os ensinamentos de Jesus com respeito às obras de misericórdia que fazem justo a um homem, a esmola, a oração e o jejum, não deixa de assinalar em cada um dos casos que o Pai, que mora no oculto, o vê, pois — diz — está ali no secreto. Com o advérbio ali pode querer significar Mateus algo mais além da consciência cotidiana, na essência ou Ser verdadeiro do homem, um ali não reconhecido ainda pela consciência, e portanto, oculto, desconhecido.
Na epístola aos colossenses se diz que no mistério de Deus — o qual é Cristo vivo, eterno, porque Cristo é o Primeiro Mistério — se acham “ocultos todos os tesouros do conhecimento perfeito”. Esta é uma afirmação também subscrita com a expectativa de Enoque, quando diz que: “Ele — Filho do Homem — revelará todos os tesouros do oculto”. Em verdade, os tesouros, a pérola, ou a pedra angular por todos desprezada, não é outra coisa que esse Cristo eterno que constitui nosso ser real, tão ignorado por cada um de nós e que é necessário fazer manifesto como resultado do que se explica na vertente oculta.
Marcos recorda no que parece um grito criador de esperança para todos os homens que buscam a Deus, que não há nada oculto se não é para que seja manifestado”. No quarto evangelho é possível estudar aquela incisiva pergunta posta na boca de Judas, o irmão de Tiago, o qual invadido de humildade não conseguia reconhecer os méritos que pudessem ter os discípulos para que se manifestasse neles o Cristo oculto: “Senhor, que passa para que ides a manifestar a nós e não ao mundo?”.
Em todos estes textos, nascidos de escolas diferentes, fica clara a sobreposição do Cristo manifesto sobre o oculto, não manifestado ao mundo senão só aos que amam e buscam a Cristo eterno, explicada na dupla via da hermenêutica paleo-cristã. O desígnio que emerge de tudo isto é que o Cristo oculto seja ao final manifestado, pois esta é em suma a obra comum que Jesus ensinou em seus dias e que a cada homem corresponde efetuar em si mesmo.
Na primeira epístola de João se explica isto muito bem:
Agora somos filhos de Deus
e ainda não se manifestou o que seremos.
Sabemos que quando se manifeste, seremos semelhantes a ele,
porque o veremos tal qual é.