Excertos da tradução em português de José Antoino Ceschin do livro de Joan O’Grady, “Heresy: Heretical Truth or Orthodox Error? a Study of Early Christian Heresies”
A religião cristã não estava unindo o Império, conforme Constantino esperava. Quase que o primeiro ato do imperador, depois de legalizar aquela religião, foi enviar um comissário imperial para o Norte da África com a missão de investigar uma disputa que ameaçava provocar uma perigosa divisão. Havia ali bispos rivais com Igrejas rivais, e era feroz o antagonismo entre seus respectivos seguidores.
A controvérsia donatista foi uma continuação de uma dissidência do terceiro século, liderada por um certo Novaciano, um presbítero da Igreja romana. Nas perseguições de Décio, no ano de 250, muitos cristãos tinham apostatado e, quando a paz foi restaurada, procuraram a readmissão na Igreja. Novaciano afirmava que todos aqueles que haviam caído não podiam ministrar os sacramentos. O bispo de Roma discordou, advogando a clemência. Novaciano colocou-se como rival do bispo de Roma e tornou-se o líder de um movimento herético, aliando-se aos montanistas.
Cinquenta anos mais tarde, surgiu um conflito semelhante no Norte da África. Durante as perseguições dioclecianas, muitos tinham cedido e entregado suas escrituras sagradas aos perseguidores. Estes eram conhecidos como traditori. Um dos traditori foi consagrado bispo de Cartago, em 311. Um sacerdote que havia resistido às perseguições, e que se mantivera fiel, foi feito bispo por um grupo rival mais rigoroso. Seu sucessor, Donato (nome do qual deriva “donatismo”), foi acusado de ofensas eclesiásticas no julgamento dos bispos rivais, que teve lugar em Roma, depois da investigação ordenada por Constantino. Donato foi considerado culpado e o Sínodo de Aries, presidido por Constantino, confirmou sua culpa.
O governo imperial havia proclamado quem estava errado, e o poder do Estado passou a ser aplicado contra a facção derrotada. Os donatistas já não eram mais considerados apenas hereges mas também rebeldes. Suas propriedades foram confiscadas e todos os seus direitos civis, suspensos. Mas eles continuaram resistindo, e Constantino e seus sucessores não foram capazes de esmagá-los.
Um século mais tarde, Agostinho tentou um entendimento com os donatistas. Escreveu tratados para discutir e rejeitar as ideias deles e, em 411, organizou uma conferência em Cartago para resolver as diferenças. Não deu resultado. Agostinho tinha insistido, antes, que a força não devia ser usada para levar os hereges a retornarem à Igreja, porque o uso da força acabaria por corromper a própria Igreja; ela acabaria sendo impregnada pela violência. Mas em seguida mudara de ideia. Segundo seu ponto de vista, a unidade era de suprema importância e tinha de ser mantida, caso contrário a Igreja não conseguiria funcionar. Se a coerção não fosse usada, os donatistas permaneceriam como um grupo separado e isolado, sem esperança para sempre.
Assim, a Igreja e o governo associavam-se para subjugar os rebeldes, que a perseguição tornava ainda mais fanáticos. Um movimento fanático, considerado ilegal pelo governo imperial, só podia atrair para seu seio os descontentes — os escravos fugitivos e os andarilhos. Registraram-se explosões de violência no Norte da África que quase levaram à guerra civil. Estes atos tinham de ser sufocados. Durante muitos anos, os donatistas foram reprimidos e perseguidos, mas conseguiam resistir e só acabaram desaparecendo com as invasões dos sarracenos ao Norte da África, no século VII.
O donatismo não foi importante apenas em suas implicações históricas mas também por causa de duas questões doutrinárias a ele inerentes.
Uma das questões levantadas pelas lutas dos donatistas diz respeito ao significado dos sacramentos. Era crucial para a posição dos donatistas a crença de que os sacramentos administrados pelos indignos nada valiam. Nenhum sacerdote que fizesse parte dos traditori podia dispensar a Eucaristia. E o batismo ou a ordenação efetuados por um dos traditori era inválido.
Agostinho definiu a posição da Igreja católica. Se o receptor tinha fé, estaria recebendo um sacramento válido, mesmo que o sacerdote fosse indigno. A Igreja era apenas uma guardiã dos meios para alcançar a graça. Era Deus quem atribuía a graça, não o homem. O fato de isto ter sido colocado de maneira bastante clara por Agostinho, como sendo um ponto de vista da Igreja, evitou o perigo de subjetividade e de julgamento subjetivo. A distinção feita entre o cargo do sacerdócio e a pessoa que o ocupava talvez tenha sido um dos fatores que permitiram à Igreja católica sobreviver aos períodos de corrupção e de intriga política que obscureceram sua história.
A outra questão diz respeito ao significado da própria Igreja. Num certo sentido, o donatismo foi mais um cisma do que uma heresia. Os donatistas permaneceram apegados aos ensinamentos “ortodoxos” da Grande Igreja. Separaram-se dela na disputa de quem seria o bispo verdadeiramente nomeado. Mas a atitude que demonstravam em relação a esta questão enfatizava o velho ponto de conflito: seria a Igreja só para os perfeitos ou para todos os níveis de homens? Deviam apenas os homens bons serem reconhecidos como membros de uma sociedade divina?
Os donatistas consideravam-se a “comunhão dos santos”. Segundo seu ponto de vista, a Igreja católica estava manchada pelo secularismo e os membros indignos minavam a santidade da Igreja. A Igreja donatista era santa e, portanto, era considerada a única Igreja de Deus. Uma Igreja santa não podia ter membros profanos.
Agostinho manifestou um ponto de vista oposto. Em sua exposição, descreveu a maneira pela qual a contradição poderia ser resolvida. Disse que os donatistas tinham entendido mal a santidade da Igreja. Ela não é perfeita aqui e agora, mas um sinal do que deve ser. É verdade que só os santos formam a verdadeira Igreja, o Corpo de Cristo, conforme descrição de Paulo. Mas na Igreja que há na Terra, existem tanto os bons como os maus — o joio tem de crescer junto com o trigo. Só a Igreja tem poder para limpar, e fora dela nada existe. Mas, “dentro” e “fora” são assuntos do coração, e não meras palavras. “Fora da Igreja” significa estar excluído dos “escolhidos” — mas a Igreja visível não é dos “escolhidos”. Alguns talvez sejam “escolhidos” mas ainda não o parecem ser, e outros podem parecer “escolhidos”, mas na verdade não o são. A Igreja está em todo o mundo, e não apenas num canto da África. Os “escolhidos” que formam a Santa Igreja não podem ser sujeitados ao julgamento humano. As pessoas têm de aceitar a Igreja na Terra. Só Deus pode julgar os “escolhidos”.
Foi assim que Agostinho respondeu aos donatistas. Ao final do século V, seu número tinha diminuído e eles foram gradualmente desaparecendo da História. Mas, apesar de seus padrões ultra-rígidos e de sua falta de clemência tê-los transformado numa seita fanática e fechada, seus pontos de vista não devem ser abandonados por completo. Nos primórdios do cristianismo, era preciso que os catecúmenos passassem por uma preparação dura e exigente antes de conquistar o privilégio especial de serem batizados. E os catecúmenos estavam dispostos a fazer grandes sacrifícios pela conquista desse privilégio. Será possível que, quando as exigências são leves e tudo é tornado mais fácil, as pessoas deem menos valor ao que é conquistado?
Uma vez mais surge o problema: teria existido um cristianismo para aqueles que se esforçavam mais por encontrar a Verdade e outro para os medíocres? E seria a religião dos mundanos uma forma de cristianismo diferente daquela observada pelos dedicados?
A concepção do monasticismo não foi dada pela Igreja em resposta a estas perguntas em particular. A diferença entre a vida de um “religioso” e a vida secular não era parte da doutrina da Igreja. A instituição do monasticismo surgiu de uma reação geral entre os cristãos quanto à secularidade do cristianismo como uma religião estatal.
Mas as elevadas exigências de uma religião tão sublime teriam de ser observadas apenas por alguns, ao passo que menos era pedido da maioria dos seguidores fracos e covardes? Os donatistas, assim como os montanistas, não permitiam de forma alguma que os seguidores deste tipo fizessem parte de uma comunidade cristã. Segundo o ponto de vista destas seitas, a qualidade espiritual estava sendo sacrificada pela Grande Igreja em favor da unidade e da universalidade. Também segundo o seu ponto de vista, a secularidade e o envolvimento político, que tinham resultado da vinculação da Igreja com o governo imperial, representavam um preço alto demais a ser pago pela continuidade da Igreja. Estes seriam argumentos que voltariam a aparecer em toda a história da Igreja.