Julgar por si mesmo (Lc XII, 57-59)

LOGIA JESUSJULGAR POR SI MESMO (Lc XII, 57-59)

EVANGELHO DE JESUS

57 Por que, por vós mesmos, não julgais o que é justo?
58 Sim, quando vais com teu adversário a um chefe,
esforça-te na estrada para te resolveres com ele, para que ele não te arraste para um juiz: o juiz te entregará ao oficial e o oficial lançar-te-á na prisão.
59 Eu te digo: não sairás de lá
senão quando tiveres entregue até o último centavo.» [Chouraqui]


Orígenes: HOMÍLIAS SOBRE O EVANGELHO DE LUCAS

Na Homilia XXXV, do pouco que restou das Homilias de Orígenes, é tratada exatamente esta passagem. Seguem alguns excertos:

Se não houvesse em nossa natureza um sentido inato para apreciar a justiça, jamais o Salvador teria dito: “Porque não julgais vós mesmos o que é justo?”

Vejo quatro personagens: o adversário, o príncipe, o juiz e o executor.

Devo tocar em algumas verdades mais misteriosas para compreender que o adversário e os três outros personagens, o príncipe, o juiz e o executor representam cada um uma pessoa diferente. Segue-se longa apresentação sobre os anjos, informando, entre outras coisas que temos uma anjo bom e um mau ao nosso lado.

O adversário com o qual fazemos caminho, está sempre conosco, infelizes e miseráveis que somos. Cada vez que pecamos, nosso adversário estremece de alegria: sabe que pode exultar e se glorificar junto ao príncipe deste mundo que o enviou; com efeito, adversário de tal e tal, por exemplo, deixou este homem sujeito do príncipe deste mundo por causa de tantos pecados, por causa de tais pecados, por esta falta ou por esta outra. Mas acontece às vezes isto: se se está equipado com a armadura de Deus e protegido de todas as partes, o adversário tentará, certamente, infligir um ferimento mas não tem a possibilidade de machucar. O adversário anda sempre conosco, ele não nos abandona jamais, ele busca uma ocasião de nos lançar armadilhas e a maneira de poder nos derrubar, em nos sugerindo um pensamento mau no fundo do coração.

A que príncipe? Desde a origem a terra foi dividida entre os príncipes, quer dizer os anjos. E cada um de nós tem um adversário que faz corpo com ele e cuja tarefa é de conduzi-lo a um príncipe. O Cristo nosso Senhor venceu todos os príncipes e rompendo suas fronteiras, atraiu para ele os povos cativos, para os salvar. E tu, tu pertencias ao partido de um príncipe, Jesus veio, te arrancou do poder do mal e te ofereceu a Deus o Pai. Assim nosso adversário caminha e nos conduz a seu príncipe. Quanto a mim, crente que todas as palavras da Escritura têm uma razão de ser, não penso que em grego se escreveu sem motivo “o” juiz com um artigo, o que indica uma pessoa única, enquanto a palavra “príncipe” está escrita sem artigo, simplesmente.

Todos com efeito não são os adversários de todos, mas cada um tem seu adversário particular que lhe segue por toda parte como um companheiro. A palavra “príncipe” não está precedida do artigo a fim de não parecer indicar um personagem determinado mas a ausência de artigo mostra que trata-se de um príncipe tomado entre vários outros, o que se compreende melhor para os gregos. Com efeito cada um de nós não tem seu príncipe de si mesmo.

Se com efeito não fazes todos teus esforços “para disto acabar”, quando tu ainda estás a caminho, antes de chegar no príncipe, antes de te veres entregue por ele ao juiz, quando o adversário te preparou bem para isto, nada poderás fazer em seguida.

Tenta acabar com isto com o adversário. Esforça-te por possuir a sabedoria, a justiça, a força, a temperança e então será realizada a palavra: “Eis o homem, seus trabalhos estão diante de sua sua face” (Is 62,11). Se não fazes esforço, não poderás quebrar o pacto de teu adversário cuja “amizade é inimizade contra Deus” (Tiago 4,4). Na passagem “em caminho te esforces” se oculta não sei que verdade, há um mistério. O Salvador diz: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6). Se fazes esforço para se livrar de teu adversário, esteja no Caminho; e se manténs nEle que diz: “Eu sou o Caminho”, isto não é suficiente, mas “faz esforço para ser liberado do adversário”. Se não fazes esforço, para ser liberado do adversário, escuta o que te aguarda. O adversário “te arrasta ao juiz”, ou bem o príncipe, depois de ter recebido do adversário.

Quanto ao juiz, não conheço outro juiz que não nosso Senhor Jesus Cristo. Orígenes fala então das possíveis penas. Devemos regrar nossas contas e se nos encontramos devedores, seremos arrastados diante do juiz e lançados ao executor pelo juiz.

Temos nossos próprios executores, mas toda a multidão levada a vários executores, segundo escrito em Isaías (Is 3,12). Os executores são nossos mestres se somos devedores. E a dívida deve ser paga impreterivelmente junto ao executor. Quanto à maneira de pagar, a natureza do que será pago e o tempo a cumprir Orígenes afirma não poder dizer claramente.


Michel Henry: PALAVRAS DO CRISTO [MHPC]

Uma outra passagem de Lucas, pouco citada, parece levar ao extremo este apelo feito ao homem a fim de que busque e reconheça nele mesmo o princípio de suas decisões e de seus atos. Evoca o momento surpreendente em que Cristo demanda a cada um de se erigir ele mesmo como juiz dos conflitos que podem o opor a outros em lugar de recorrer às instâncias exteriores como os tribunais. Sabe-se como Paulo que conhecia evidentemente este ensinamentos, lhe conferia uma significação decisiva. Mas o tema é por toda parte presente nos sinóticos: “O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado” (Mc 2,27; Guardar o sábado).