Grande Mito Maniqueista

Mircea Eliade — História das Crenças e das Ideias Religiosas

Excertos da tradução em português de Roberto Cortes de Lacerda

O GRANDE MITO: A QUEDA E A REDENÇÃO DA ALMA DIVINA.

No princípio, no “Tempo anterior”, as duas “Naturezas” ou “Substâncias”, a Luz e a Escuridão, o Bem e o Mal, Deus e a Matéria, coexistem separados por uma fronteira. No Norte, reina o “Pai da Grandeza” (assimilado ao Deus Pai dos cristãos e, em terra iraniana, a Zurvan); no Sul, o “Príncipe das Trevas” (Arimã ou, para os cristãos, o Diabo). Mas o “movimento desordenado” da Matéria impele o Príncipe das Trevas para a fronteira superior do seu reino. Ao perceber o esplendor da Luz, é inflamado pelo desejo de conquistá-la. É nesse momento que o Pai decide expulsar pessoalmente o adversário. “Evoca”, i.e., projeta, a partir de Si, a “Mãe da Vida”, que, por seu turno, projeta uma nova hipóstase, o “Homem Primordial” (Ohrmuzd nas transposições iranianas) . Com os seus cinco filhos, que são, na verdade, a sua “alma”, uma “armadura” feita de cinco luzes, o Homem Primordial desce à fronteira. Enfrenta as Trevas, mas é vencido e os seus filhos são devorados pelos Demônios (os Arcontes). Essa derrota assinala o começo da “mistura” cósmica, mas assegura, ao mesmo tempo, o triunfo final de Deus. Desse modo, a Escuridão (a Matéria) possui agora uma porção da Luz, isto é, uma parte da alma divina, e o Pai, preparando a sua libertação, toma, ao mesmo tempo, todas as providências para a sua vitória definitiva contra as Trevas.

Numa segunda Criação, o Pai “evoca” o Espírito Vivo, que, descendo para a Escuridão, aperta a mão do Homem Primordial1 e iça-o para a sua pátria celestial, o Paraíso das Luzes. Vencendo os Arcontes demoníacos, o Espírito Vivo serve-se das suas peles para modelar os céus, dos ossos para afeiçoar os montes, da carne e dos excrementos para conformar a terra. (Reconhece-se aqui o velho mito da criação por meio do sacrifício de um Gigante ou Monstro primordial, de tipo Tiamat, Ymir, Purusha) Conclui, ademais, uma primeira libertação da Luz, criando o Sol, a Lua e as estrelas, porções que ainda não haviam tido um contato excessivo com a Escuridão.

Por fim, o Pai procede a uma última evocação e projeta, por emanação, o “Terceiro Mensageiro”. Este organiza o Cosmo numa espécie de máquina destinada a sugar e, no final das contas, a libertar as partículas de Luz ainda prisioneiras. Na primeira quinzena do mês, as parcelas sobem até a lua, que se converte em lua cheia; na segunda quinzena, a Luz é transferida da lua para o sol e, finalmente, para a sua pátria celeste. No entanto, ainda restavam as partículas que foram engolidas pelos Demônios. Então o Mensageiro aparece aos Demônios machos sob a forma de uma deslumbrante virgem nua, enquanto os Demônios do sexo feminino o veem como um belo rapaz nu (interpretação sórdida, “demoníaca”, da natureza andrógina do Mensageiro celeste). Inflamados pelo desejo, os Arcontes machos derramam o seu sêmen e, com ele, a luz que haviam engolido. Ao cair em terra, o sêmen dá origem a todas as espécies vegetais. Quanto às demônias, engravidadas pela visão do belo rapaz, abortam fetos que, lançados na terra, comem os rebentos das árvores, assimilando destarte a luz neles contida.

Alarmada diante da tática do Terceiro Mensageiro, a Matéria, personificada na “Concupiscência”, decide criar uma prisão mais segura ao redor das partículas de luz ainda cativas. Dois demônios, um macho e uma fêmea, devoram todos os fetos abortados a fim de absorver a tolidade da luz, e, em seguida, acasalam-se. Dessa forma, foram gerados Adão e Eva. Como escreve Henri-Charles Puech, “a nossa espécie nasce, portanto, de uma sequência de atos repugnantes de canibalismo e sexualidade. Ela conserva os estigmas dessa origem demoníaca: o corpo, que é a forma animal dos Arcontes; a libido, o desejo, que incita os homens a se unirem sexualmente e a se reproduzirem, ou seja, de acordo com o plano da Matéria, a manterem indefinidamente no seu cativeiro a alma luminosa que a geração transmite, ‘transvasa’ de corpo a corpo” (op. cit., p. 81).

Mas, como a maior quantidade de luz se acha agora reunida em Adão, é ele, com a sua descendência, que se torna o principal objeto da redenção. Repete-se o argumento escatológico: do mesmo modo como o Homem Primordial foi salvo pelo Espírito Vivo, Adão, degradado, sem conhecimento, é despertado pelo Salvador, o “Filho de Deus”, identificado com Ohrmizd ou com “Jesus a Luz”. É a encarnação da Inteligência Salvadora (“o deus de Noús”, “o Noús”) que vem salvar em Adão a sua própria alma, perdida e acorrentada nas Trevas (Puech, p. 82). Como nos demais sistemas gnósticos, a libertação comporta três estágios: o despertar, a revelação da ciência salvadora e a anamnese. “Examinou-se Adão a si próprio e soube que era…”. “A alma do bem-aventurado, que voltou a ser inteligente, ressuscitou.”2

Esse argumento soteriológico torna-se o modelo exemplar de toda redenção pela gnose, presente e futura. Até o fim do mundo, uma parte da Luz, ou seja, da alma divina, forcejará por “despertar” e, finalmente, libertar a outra parte, emparedada no mundo, no corpo dos homens e dos animais, e em todas as espécies vegetais. São sobretudo as árvores, que contêm uma forte quantidade da alma divina, e que servem de forca ao Cristo sofredor, o Jesus Patibilis. Como dizia o maniqueísta Fausto, “Jesus, Vida e Salvação dos homens, está pendurado em todo pedaço de madeira”3. A continuação do mundo prolonga a crucificação e a agonia do Jesus histórico. É verdade que as parcelas de Luz, isto é, as almas dos mortos bem-aventurados, são continuamente transportadas para o Paraíso celeste pelos “navios” da Lua e do Sol. Mas, por outro lado, a redenção final é retardada por todos aqueles que não seguem a via indicada por Mani, ou seja, não evitam a procriação. Pois, como a Luz está concentrada no esperma, cada criança que vem ao mundo não faz senão prolongar o cativeiro de uma parcela divina.

Na descrição do “Terceiro Tempo”, o final escatológico, Mani recorre às imagens apocalípticas comuns em toda a Ásia ocidental e no mundo helenístico. O drama inicia-se por uma série de terríveis provas (denominadas pelos maniqueístas a “Grande Guerra”), que precedem o triunfo da Igreja da Justiça e o Juízo Final, quando as almas serão julgadas perante o tribunal (bêma) de Cristo. Depois de um curto reinado, Cristo, os Eleitos e todas as personificações do Bem subirão ao Céu. O mundo, inflamado e purificado por um incêndio de 1.468 anos, será destruído. As últimas parcelas de Luz serão reunidas numa “Estátua” que tornará a subir ao Céu4. A Matéria, com todas as suas personificações, os seus demônios e as suas vítimas, os condenados, será aprisionada numa espécie de “bola” (o bolos) e lançada no fundo de um fosso gigantesco, selado por um rochedo. Dessa vez, a separação das duas Substâncias será definitiva, pois a Escuridão nunca mais poderá invadir o Reino da Luz.


NOTAS: footnotearea



CITAÇÕES:


  1. O aperto de mão tornar-se-á o rito maniqueísta por excelência. 

  2. Théodore bar Kônai, em Franz Cumont, Recherches sur le Manichéisme, I, p. 47: fragmenta de Tourfân S 9, publicado por Henning e traduzido por Puech, p. 82. 

  3. Expressão referida por Santo Agostinho, Contra Faustum, XX, 2. 

  4. No entanto, segundo certas escolas maniqueístas, nem todas as almas ficarão para sempre prisioneiras da Matéria.