Gilson Entes

Etienne Gilson — A EXISTÊNCIA NA FILOSOFIA DE S. TOMÁS DE AQUINO
A COMPOSIÇÃO DOS ENTES FINITOS
Não se pode falar numa composição do ser divino. Deus é puro ser, portanto simples; a noção de uma composição do ser divino seria absurda. O ser finito, ao contrário, é composto pelo menos de dois elementos, por isso dele se pode dizer que tem uma estrutura metafísica. Essa razão por si só já esclarece a repetida afirmação de que o ser é análogo. Há algo de semelhante entre o ser divino e o ser finito de tudo aquilo que não é Deus. A semelhança consiste no seguinte: qualquer que seja a natureza daquilo a que as atribui o ato de ser, esse ato de ser, que ele tem, coloca-o na existência atual, fora do nada, como um verdadeiro ente. Por outro lado, há diferenças que impedem que se atribua o ser a Deus e às criaturas em sentido idêntico. Essas diferenças se devem ao fato de que ser não é o mesmo no ato de ser subsistente em si, que nós chamamos Deus, e nas substâncias finitas, nas quais os atos de ser são recebidos por essências, das quais se distinguem. Já por essa primeira razão, o ser só se poderia dizer das criaturas e de Deus de maneira semelhante, mas não idêntica. A expressão comum dessa verdade é que ser é “análogo”. Consideremos, primeiramente, essa noção analógica do ser na extensão mais larga possível, isto é, como aplicável a tudo aquilo que possa ser dito ser. Nesse caso, significa tudo o que exerce certo ato de ser. Se, ao contrário, nós limitamos sua extensão apenas aos entes finitos, então significa tudo o que tem ser. Daí a definição frequentemente dada por Tomás de Aquino: ente significa ter um ato de ser (ens dicitur quasi esse habens). “Aquilo que” tem um ato de ser se chama essência, de modo que, em última análise, um ente finito pode ser definido com exatidão: uma essência dotada de um ato de ser.

Isso parece uma afirmação perfeitamente simples, e de certo modo o é; entretanto, devemos nos deter um momento para considerá-la, porque se algum erro se comete acerca do seu significado, a metafísica de Tomás de Aquino, como um todo, perde o seu significado original.

No pensamento de Tomás de Aquino, o significado da fórmula é claro. Uma das nossas primeiras observações sobre as relações entre essência e existência foi que a existência é mais perfeita do que a essência. Na fórmula: ser é tudo aquilo que tem um ato em virtude do qual ele é, não há dúvida que o elemento determinante é o ato de ser. É o que o próprio Tomás diz repetidamente: “este nome, Ser, se toma do próprio ato que nós chamamos Ser”. (Met., IV, 1. 2, n. 558) De fato, ser realmente é ser sendo.

Tomando-o literalmente, isto implica a consequência de que a noção de ser inclui necessariamente uma referência explícita ou implícita ao ato de ser que Tomás chama esse. Na medida em que a metafísica é a ciência do ser enquanto ser, chegamos também à seguinte conclusão: toda afirmação de ordem metafísica, tomada precisamente enquanto metafísica, tem uma referência explícita ou implícita ao ato de ser. E, de fato, esta é uma das características mais autênticas da noção metafísica do ser, e da ciência do ser na doutrina de São Tomás de Aquino. Se algum filósofo ou teólogo, ainda que se considere tomista, ensinar uma metafísica na qual a noção de ser é concebível separadamente da noção de existência atual, ele pode ficar certo de que, desde o primeiro momento de sua especulação, já se separa de Tomás de Aquino.

Tais filósofos existem. E acreditam que se tomarmos o ser como um nome (ens ut nomen), este prescinde da existência atual. E noutras palavras, definindo o significado da palavra ser, esses metafísicos excluem intencionalmente toda consideração do ato de ser. O que resta do ser assim considerado é o seu segundo elemento, ou seja: “aquilo que” é dito ter ser, considerado à parte do ser que possui. Numa palavra, o que então resta do ser é a essência. É certo que a essência, no caso, não exclui a existência atual, mas também não a inclui. Como foi dito, prescinde dela. De acordo com tais doutrinas, essa espécie de ser é precisamente ens ut sic, i. é, ser enquanto ser1. Desde que o ser que é objeto da especulação metafísica se encontra assim reduzido à realidade da sua essência, não seria fazer violência a essa doutrina, chamá-la de “essencialismo”. Seu objeto não é mais “aquilo que possui um ato de ser”, mas antes, a natureza daquilo que possui tal ato, menos o ato. Esses filósofos não reduzem o ser a um mero ente de razão. O objeto de sua metafísica não é a noção abstrata da essência em geral, nem tampouco a noção abstrata de alguma essência particular. Seu objeto é a realidade da essência posta na existência atual pela eficácia de suas causas. Sendo a causa real e sendo o seu efeito real, não há necessidade de apelar para um ato suplementar de ser.2.

Não é o caso de tentarmos uma refutação desta noção de ser. Se uma pessoa vê que ser significa aquilo que tem existência, e se essa pessoa, não obstante, decide considerar o ser à parte de suas relações com o ato em virtude do qual ele tem existência atual, nada se pode fazer. Na realidade a esmagadora maioria dos homens, filósofos ou não, são a favor dessa posição. O que, entretanto, se deve dizer, que essa noção de ser pouco tem de comum com a metafísica de Tomás de Aquino, na qual é considerada absoluta falta de senso pretender que aquilo que o verbo ser significa pode prescindir da definição de ser.

Em resumo, a nova noção de ser desenvolvida por Tomás de Aquino torna impossível isolar a existência atual para poder reduzir a metafísica a uma consideração de essência. No tomismo autêntico não existe a “essência real” separada do ato de existir que faz dela uma realidade.

NOTAS:


  1. “Este é o sentido com que falamos de “algo” (aliquid) ou de “essência real” (essentiam realem). Ora, essa essência implica uma relação com o exercício da perfeição, que é expressa pelo verbo ser, mas prescinde da existência de maneira a não incluí-la nem excluí-la, sendo consequentemente predicável tanto da essência existente como da meramente possível. Deste modo, recebendo essa significação tão abstrata, isto é, prescindindo da existência (embora não a excluindo), o ser é chamado: ser enquanto ser (Ens ut sic)”. P. Descoqs, S. J., Institutiones metaphysicae generalis, vol. I, p. 134). 

  2. O P. Descoqs tem uma inteligência bastante sutil para ver que a sua interpretação da noção de ser estava exposta à acusação de fazer da Metafísica (que trata do ser enquanto ser) mera Lógica. Sua resposta é que, como é compreendido na doutrina, o ser mantém sua total realidade metafísica. Ele pode chamar-se o “ser metafísico real” (Unde ei absoluto convenit denominatio “entis realis metaphysici”). P. Descoqs, S. J., Institutiones metaphysicae generalis, vol. I. p. 135. Ver a longa citação de J. Klentgen, S. J., La philosophie scolastique, vol. II, p. 88-92, in P. Descoqs, op. cit., vol. II, p. 89-92.