Tradução de Antonio Carneiro das páginas 40, 41 e 42
Para melhor compreensão do comentário ao “Evangelho de Felipe” vamos descrever brevemente a linha doutrinal valentiniana, relativa à criação e redenção do mundo e da humanidade.
Valentino concebe o mistério de Deus como “Abismo” misterioso, mas também como “Plenitude” original de onde emanam “Potências” hierarquizadas e reunidas em “Pares” masculino-femininas. Seu processo emanativo é com segue:
1. Deus “Pai” transcendente é par da “Ideia”. Seu “Filho” único está ligado à “Verdade”. Eles formam a “Quaterna” inicial. A segunda “Quaterna” consta da “Palavra” do Pai, unida à “Vida” , junto com a potência do “Homem” com a “Igreja” . Ambas quaternas formam a “Octava” , donde pululam 30 “Emanações” ou “Eones” divinos, reunidos em 15 pares. tudo isso é a “Plenitude” cujo “Limite” externo se chama “cruz”.
2. O “Eão” 30 que é a “Sabedoria” interior, ao desejar compreender à Deus infinito comete uma “falha” original, introduz o mal na “Plenitude” , é excluído e se dilui em “Saberes” dispersos.
3. Para remediar tal situação, o Pai, cujo par feminino é o “Espírito Santo”, produz o Cristo. O novo “Logos” devolve o equilíbrio da “Plenitude” , ao ensinar-lhe a “Gnosis” e criar uma “Sabedoria exterior” substancial, capaz de harmonizar com os “Eones”, desconcertados até então.
4. “Cristo” é o “Salvador”, fruto comum da “Plenitude” com o “Espírito” , acumula todos os seus nomes: Logos, Vida, Filho Unigênito, Homem, Filho do Homem, Igreja, Luz, Jesus invisível.
5. Este Salvador, também chamado de “Jesus de acima” ou “invisível” , origina pelo conhecimento à verdadeira “Sabedoria redentora” , também chamada “Espírito Santo” , que dará origem à três tipos de substância. A primeira é a “Espiritual” (pneumática). A segunda “Anímica” (psíquica). Finalmente a terceira “Material” (hílica1 ), incapaz de redenção. Protótipo de substância química é o “Demiurgo” , Deus do Antigo Testamento, criador do mundo e de seres sinistros2 (materiais) e destros3 (psíquicos). Protótipos de substâncias pneumáticas são os “Eleitos” , encarnados em reis, profetas e sacerdotes. São imagens dos gnósticos, antecipadas no Antigo Testamento.
6. O “Demiurgo” , após fabricar o mundo, modelou o homem “Adão” , de barro fluido, lhe infundiu a “Alma” , sopro da vida, e lhe revestiu de túnica de pele. A “Sabedoria” , contemplando os anjos, engendrou um “Espírito” e o depositou no “Demiurgo” inconsciente. este o infundiu nos “Eleitos” . Por isso a humanidade consta de três tipos de pessoas: materiais, simbolizadas por Caim; anímicos, exemplificados por Abel; e espirituais, cujo protótipo é Seth. Os primeiros não tem salvação. Os segundos podem lográ-la pela sua boa conduta. Os terceiros são os predestinados.
7. O Salvador Jesus invisível, desce ao mundo como um “Espiritual” . Sua Igreja autêntica é o conjunto de “Eleitos” . Por isso se chama “Corpo de Cristo Espiritual” , integrado por espirituais.
8. Jesus invisível baixou no Jordão sobre o “Jesus visível” outorgando-lhe o “Logos” pneumático e fazendo-lhe consciência de sua missão e divindade. Maria, sua mãe, lhe havia dado o corpo passível.
9. Ao completar-se o número previsto de eleitos, virá a “Consumação” final. O Salvador e a Mãe, simbolizados pela “Esposa” e o “Esposo” citados no Evangelho, subirão à “Plenitude” em “Pares de Anjos” (varões) e “Gnósticos” (fêmeas). A alma é o vestido nupcial para entrar no “Repouso” e na Glória. Os “psíquicos” convertidos se salvarão, mas sóâs portas do céu, no interior da “Plenitude”4.
Desta síntese apertada pode-se deduzir uma cosmovisão formidável, cheia de criatividade imaginativa e impregnada de inspiração, tanto filosófica (platônica e plotiniana) como bíblica (vetero e neo-testamentárias). Tal visão do mundo tinha que ser sumamente atrativa para os intelectuais cristãos da época, quando começava-se a perfilar o diálogo da fé com a cultura de então, tanto em Constantinopla quanto Alexandria, e buscavam-se os modos de expressão do pensamento contemporâneo. No Comentário se verá as pegadas desta cosmovisão.
NT: pertencente à matéria; corpóreo, material. ETIM. gr. hylikos, ê, ón ‘material, corporal; carnal, donde impuro’. (In.: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia, Objetiva: Rio de Janeiro, 2001, 1a. edição, 2922 p. vide página 1532). ↩
NT: Em espanhol está “siniestros” cujo tradução seria esquerdos cujo sentido no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia, Objetiva: Rio de Janeiro, 2001, 1a. edição, 2922 p. na página 1240 são os seguintes: 1. relativo ao lado esquerda; sinistro, sestro. Na página 2580 a palavra sinistro tem as seguintes definições: 1. que usa preferencialmente a mão esquerda (diz-se de pessoa); esquerdo, canhoto. 2. pressagia acontecimentos infaustos; agourento, funesto 3. que é pernicioso, mau 4. que se deve temer; assustador, temível 5. que causa o mau; pernicioso, perigoso 6. trágico, calamitoso. Portanto o termo sinistro é o que melhor se adequa para o texto em questão excetuando a definição 1. Traduzir como esquerdo ou canhoto seria impróprio e só traria confusão. ↩
NT: Em espanhol está “diestros” cujo tradução seria “destros” cujo sentido no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia, Objetiva: Rio de Janeiro, 2001, 1a. edição, 2922 p. na página 1019 são os seguintes: 1. que usa preferencialmente a mão direita (diz-se de pessoa); direito, manidestro. 2. que está à direita 3. p. metf. dotado de habilidade, perito 4. p.ext. dotado de desembaraço, rápido, expedito 5. fig. dotado de sagacidade, astuto, ladino. Se fosse traduzido como “direitos” a primeira definição é: que segue a lei e os bons costumes; justo, correto, honesto. As demais seguem essa linha: de conduta impecável, irrepreensível; sem erros; certo… Seria exagero usar “direitos” pois induziria à um excesso de carga não condizente com a proposta da definição pelo autor que usou “siniestros” e “diestros”. ↩
F.M.Sagnard, “La gnose valentinienne et le temoignage de S. Irenée” , Paris, 1947. Id. “Clément d’Alexandrie: Extraits de Théodote”, Paris, 1948. ↩