Evangelho de Felipe [BLGS]

Apresentação resumida retirada da obra The Gnostic Scriptures: A New Translation with Annotations and Introductions (The Anchor Yale Bible Reference Library), de Bentley Layton

A obra denominada “Evangelho de acordo com Felipe” é uma antologia valentiniana contendo cerca de cem pequenos excertos retirados de várias outras obras. Nenhuma das fontes destes excertos ainda foram identificados, e aparentemente não sobreviveram. A julgar pelo estilo e conteúdo, as fontes originais devem ter sido sermões, tratados, ou epístolas filosóficas (gêneros típicos de Valentino), assim como coletânea de aforismos ou pequenos diálogos com comentários. Devido a sua brevidade e falta de contexto é difícil designar qualquer um deles a uma escola particular de teologia valentiniana. Por outro lado, nada indica que tudo veio de um mesmo ramo da igreja valentiniana. É possível que alguns dos excertos sejam de Valentino ele mesmo. Outros, entretanto referem-se a etimologias em siríaco, a língua semita (um dialeto do aramaico) usado em Edessa e na Mesopotâmia ocidental; estes devem ser obra de um teólogo oriental valentiniano, escrevendo e, um meio bilíngue tal como Edessa. Provavelmente a língua de composição de todos os excertos era o grego.

O Evangelho de Felipe não é a única antologia valentiniana a sobreviver, pois dentre as obras atribuídas à Clemente de Alexandria havia uma coleção de excertos dos escritos do teólogo Teodoto, um dos principais representantes do ramo “oriental” do valentianismo. Este é conhecido como “Excerptos ex Theodoto”. Esta sobrevivência de excertos não propicia o estudo aprofundado da teologia valentiniana.

O título da obra, Evangelho de Felipe, deve ter sido dado após a composição da coletânea de excertos. O termo evangelho não tem o mesmo significado que o dado aos evangelhos canônicos, mas tem o sentido primitivo de “boa nova” e “pregação”. Felipe é o único apóstolo mencionado no texto por nome, e isto deve justificar seu nome no título. Esta obra é uma das poucas obras valentinianas a usar um nome que não seja de um teólogo valentiniano, detentor da tradição apostólica valentiniana.

Alguns termos chaves se destacam na obra e alguns temas são recorrentes em muitos excertos, o que indica certa preferência pela questão dos sacramentos (possivelmente batismo na maioria dos casos)

Surpreende as muitas referências a sacramentos (“mistérios”), presumivelmente reconhecidos pela comunidade cristã valentiniana: batismo, crisma (unção com óleo santo), eucaristia, resgate e câmara nupcial. O mais valentiniano destes seria a câmara nupcial, que neste evangelho não deixa claro se se trata de uma metáfora teológica de salvação ou um ritual de verdade. Na “câmara nupcial imaginada” a alma ou “imagem” junta-se com o anjo e se torna como tal um andrógino, salva de tentações sexuais. Esta união retifica a separação de Adão e Eva, o andrógino original. Em tal união embarca-se no “retorno” (apokatastasis) a sua morada espiritual; esta é a recepção da ressurreição e do espírito santo. É surpreendente que o termo “conhecimento” desempenhe um papel mínimo nos excertos.

A tradução dos excertos a seguir se valeu da obra citada de Bentley Layton e também da tradução de Wesley W. Isenberg, constante da edição organizada por James Robinson, da Biblioteca de Nag Hammadi.


EXCERTOS:

Fazendo um converso

51 (99) Um hebreu faz um hebreu, e tal pessoa é chamada um converso (prosélito). Mas, um converso não faz outro converso. ( … ) são como eles ( … ) e fazem outros (como eles mesmos), é suficiente que existam[[Na versão de James RobinsonJames Robinson: enquanto (outros) simplesmente existem.]].


Aqueles que herdam o vivente

52 (100) 2. Tudo que um escravo quer é ser livre; o escravo não espera pelas riquezas de seu mestre. Porém o filho não é somente um filho; ao contrário o filho demanda o legado do pai. Aqueles[[Provavelmente início de um novo excerto.]] que herdam coisas mortas são também mortos, e o que eles herdam são coisas mortas. Aqueles que herdam o vivente são vivos, e eles herdam ambos, o vivente e as coisas que estão mortas. As coisas mortas nada herdam, pois como poderia uma coisa morta herdar algo? Se uma pessoa morta herda o vivente, esta pessoa não morrerá, mas ao contrário viverá abundantemente.


O estado de ser um cristão

3. Um gentio não morre, pois o gentio nunca se tornou vivo para morrer. Aquele que acreditou na verdade se tornou vivo; e esta pessoa corre o risco de morrer, por causa de estar vivo.
Desde a vinda de Cristo[[Provavelmente um novo excerto]], o mundo foi criado, cidades foram organizadas, e os mortos foram enterrados. Quando éramos hebreus éramos órfãos com (somente) uma mãe, mas quando nos tornamos cristãos ganhamos pai e mãe.


Plante no mundo e colha no outro reino

4. Quem quer que plante o inverno colhe no verão. o “inverno” significa o mundo; o “verão” significa o outro mundo. Vamos plantar no mundo para que possamos colher no verão. Por esta razão devemos não orar no inverno. O que emerge do inverno é o verão. Mas se se colhe no inverno, não se colherá realmente mas apenas arrancar plantas jovens, pois isto não suportará uma colheita. Não somente isto se passa (…) mas mesmo no sabá (…) é infecundo.


Cristo veio resgatar a alma

5. O ungido (Cristo) veio comprar alguns, resgatar alguns, e remir alguns. 53 (101) Ele comprou aqueles que eram estrangeiros e os fez seus próprios. E trouxe de volta seus próprios, a quem voluntariamente tinha disposto como um depósito. Não somente, uma vez que apareceu, ele dispôs a alma (como um depósito) quando ele quis, mas do momento que o mundo existiu ele dispôs a alma para tal tempo qual ele desejava. Então ele emanou (ou surgiu) de maneira que ele pudesse levá-la de volta, posto que ela a dispôs como um depósito. Ela caiu nas mãos dos bandidos[[Nome tradicional para regentes, forças, e espíritos de malícia.]], e eles a tomaram cativa. Mas ele a resgatou; e ele remiu àqueles que são bons no mundo, e os maus (algumas palavras estão omissas em seguida).


Dependência mútua dos opostos neste mundo

6. Luz e escuridão, vida e morte, direita e esquerda, são irmãos um do outro. São inseparáveis. Por causa disto nem o bom é bom, nem o mal é mal, nem é a vida vida, nem a morte morte. Por esta razão cada um dissolverá em sua antiga origem. Mas aqueles que são exaltados acima do mundo são indissolúveis, eternos.


Nomes reais e nomes irreais

7. Nomes dados ao mundano são muito enganadores, pois desvirtuam nossos pensamentos do que é correto para o que é incorreto. Assim aquele que ouve a palavra «Deus» não percebe o que é correto, mas percebe o que é incorreto. Assim também «o pai» e «o filho» e «o espírito santo» e «vida» e «luz» e «ressurreição» e «a igreja» e todo o resto — as pessoas não percebem o que é correto mas percebem o que é incorreto, [a não ser] que venham a conhecer o que é correto. Os [nomes que ouvimos] estão no mundo [… enganam. se eles] estivessem no reino eterno (aion), a qualquer momento seriam usados como nomes no mundo. Nem seriam estabelecidos entre coisas mundanas. Têm um fim no reino eterno.


O nome do pai pertence ao filho

8. Um simples nome é expresso no mundo, o nome que o pai deu ao filho; é o nome acima de todas as coisas: o nome do pai. Pois o filho não se tornaria pai a não ser que use o nome do pai. Aqueles que têm este nome o sabem, mas disto não falam. Mas aqueles que não o tem não o sabem. Mas a verdade trouxe nomes à existência no mundo para nosso bem porque não é possível isto aprender sem estes nomes. A verdade é uma única coisa; é muitas coisas, e é para nosso bem que amorosamente refere-se a esta coisa única por meio da multiplicidade.


Escravidão a falsos nomes

9. Os regentes (arcontes) queriam enganar o homem, posto que viam que ele tinha um parentesco com aqueles que são verdadeiramente bons. Tiraram os nomes daqueles que são bons e o deram àqueles que não são bons, de modo que através dos nomes podiam enganá-los e atrelá-los àqueles que não são bons. E posteriormente, que favor fizeram para eles! Os fizeram ser removidos daqueles que não são bons e os puseram entre aqueles que são bons. Estas coisas sabiam, pois queriam tomar o o homem livre e fazê-lo um escravo deles para sempre.


Sacrifícios aos poderes e a deus

10. Há poderes que […] homem, não querendo que ele seja [salvo], a fim de que eles possam […]. Pois se o homem é [salvo, não haverá] quaisquer sacrifícios […] e os animais não serão oferecidos aos poderes. De fato os animais foram aqueles para quem eles sacrificaram. Estavam de fato os oferecendo vivos, mas quando os ofereceram eles morreram. Como para o homem, ofereceram-no para Deus morto, e ele viveu.


Cristo portador do pão

11. Antes do Cristo vir não havia pão no mundo, assim como no Paraíso, o lugar onde Adão estava, tinha muitas árvores para alimentar os animais mas nenhum trigo para sustentar o homem. O homem costumava a se alimentar como os animais, mas quando Cristo veio, o homem perfeito, ele trouxe pão do céu a fim de que o homem pudesse ser alimentado com o alimento do homem. Os regentes pensaram que foi por seu próprio poder e vontade que estavam fazendo o que fizeram, mas o espírito santo em segredo estava realizando tudo através deles como desejava.


Maria a virgem não concebeu pelo Espírito Santo

12. Alguns dizem, «Muitos conceberam pelo o espírito santo». Eles estão em erro. Eles não sabem o que estão dizendo. Quando uma mulher jamais concebeu por uma mulher? Maria é a virgem que nenhum poder enganou. Ela é um grande anátema para os Hebreus, que são os apóstolos e [os] homens apostólicos. Esta virgem que nenhum poder enganou […] os poderes enganam a eles mesmos.


Os discípulos deveriam juntar, não remover

16. O senhor disse para os discípulos, «[…] de toda cas. Juntem [coisas] na morada do pai; mas não roubem e removam [qualquer coisa] enquanto na morada do pai».


Nomes de Jesus Cristo

17. «Jesus» é um nome privado, «Cristo (o ungido)» é um nome público. Portanto, «Jesus» não existe (como uma palavra) em qualquer linguagem, mas o invés seu nome pelo qual é chamado é «Jesus». Mas a palavra para Cristo em siríaco é messias, e em grego é christos, e provavelmente todos os outros a tem de acordo com a linguagem particular de cada. «O Nazareno» é um nome público do nome privado.


A ressurreição deve preceder a morte

19. Aqueles que dizem que o senhor primeiro morreu e então elevou-se estão equivocados, pois primeiro elevou-se e então orreu. Se primeiro não obtém a ressurreição, não se morrerá. Assim como deus vive! essa pessoa seria…


O precioso oculto no sem valor

20. Ninguém ocultaria um objeto caro precioso dentro de um coisa dispensável, no entanto frequentemente alguém manteve grandes somas em algo sem qualquer valor. Tal é o caso com a alma: é uma coisa preciosa, e veio a residir em um corpo humilde.


O pão eucarístico e a ressurreição

21. Algumas pessoas têm medo que possam levantar-se (dentre os mortos) nus: portanto querem levantar-se na carne. E não sabem que aqueles que vestem a carne são aqueles que estão nus. Aqueles que […] para despojar-se não estão nus. «A carne [e o sangue não irão] herdar o reino [de deus]». O que é esta carne que não irá herdá-lo? Aqueles que estamos vestindo. E o que, também, é esta carne que irá herdá-lo? É a carne de Jesus, juntamente com seu sangue.

Portanto ele disse, «Aquele que não comer minha carne e beber meu sangue não tem vida dentro dele». Que é significado por isto? Sua «carne» significa o Verbo, e seu «sangue» significa o espírito santo; quem quer tenha recebido isto tem alimento, e tem bebida e veste. Da minha parte condeno (também) aqueles outros que dizem que a carne não se levantará. Deste modo, ambas posições são deficientes.

(Como a um debatedor imaginário:) Dizes que a carne não se levantará? Venha agora, diga-me que elemento vai levantar-se, de modo que possa congratular-te! Dizes é o espírito que reside dentro da carne, e também a luz que está dentro da carne? Esta coisa «que também está dentro da carne» é o Verbo (ou faculdade racional ou pedagógica); pois o que estás a respeito não é nada mais que a carne! É necessário levantar-se nesta espécie de carne, posto que tudo nela existe. Neste mundo aqueles que veste roupas são superiores às roupas: no Reino dos Césu as roupas são superiores àqueles que as põem.


Batismo e crisma

22. Pela água e fogo o lugar todo é santificado — o visível (elemento dele) pelo visível, o oculto pelo oculto. Alguns (elementos) estão ocultos pelo visível: há água dentro da água, há fogo dentro da crisma.


As muitas aparições de Jesus

23. Jesus enganou a todos, pois não apareceu como era, mas apareceu de tal maneira que podia ser visto. E apareceu a todos eles — [apareceu] ao grande como alguém grande, apareceu ao pequeno como alguém pequeno, [apareceu] aos anjos como um anjo e aos seres humanos como um ser humano. Por esta razão fez seu discurso para todos. Alguns o viram e pensaram que viam seus próprios eus. Mas quando apareceu para seus discípulos em glória sobre a montanha não era pequeno, (pois) se tornou grande: ou melhor, fez seus discípulos grandes de modo que eles pudessem ser capazes de ver que ele era grande.


A prole do ser humano perfeito

27. A pessoa celeste tem grande prole, mais do que a terrestre. Se a prole de Adão é grande e no entanto morre, quão maior é a prole do ser humano perfeito, que não morre mas nasce a cada momento! Um pai faz filhos e um (jovem) filho é impotente para fazer filhos. Pois alguém que tenha (recém) nascido não pode ser um pai: ao invés, um filho obtém irmãos, não filhos. Todos aqueles nascidos no mundo são nascidos de uma ordem natural. E os outros aqui [são alimentados] daquilo de onde foram nascidos. Os seres humanos [se alimentam] da promessa do lugar celestial. […] da boca, [e se] o Verbo de lá emanou, ele seria alimentado da boca, e seria perfeito. Pois é através do beijo que o perfeito concebe e dá nascimento. Por esta razão também beijamos um ao outro: é pela graça residindo em cada um que concebemos.