Eugênio Trias (DVReligão) – Razão e superstição

Os recentes acontecimentos que ocupam o primeiro plano nos meios de comunicação, como a queda dos regimes autoritários do Leste, a crise no golfo Pérsico ou o conflito iugoslavo, puseram em evidência, muito claramente, a importância radical dos substratos religiosos ou religio-culturais que sustentam as sociedades que disputam a hegemonia de nosso mundo. O chamado para uma cruzada contra um inimigo satanizado combina-se com discursos oportunistas de reconstrução espiritual (cristã) que buscam preencher o vazio, de sentido e de valor, deixado por regimes políticos desmantelados.

Tudo isso tem por marco e horizonte uma crise geral que afeta a ideia ou o ideal de razão que o Ocidente, desde o Iluminismo, tem forjado e estabelecido. Convém, portanto, pegar o touro pelos chifres e não fugir ao processo de comprovação lúcida da magnitude de tal crise. Essa razão proclamada por nossos antepassados ilustrados foi cega em relação a tais substratos religiosos que agora surgem com inusitada força e vigor.

Ela jamais se propôs a compreender, em toda sua riqueza e razão de ser, esses substratos. Utilizou-os como sombra ou como bode expiatório a partir dos quais se funda e se constitui como razão soberana. Na luta com a religião, a Razão quis obter sua autojustificação. A religião foi julgada e criticada por meio de um termo abjeto que nossos ancestrais romanos inventaram para o caso: a palavra superstição.

Este termo, superstitio, foi adotado por advogados, leguleios e burocratas como o reverso negro (condenado e rechaçado) da religio romana, única forma de religião que consideravam legítima. Diante dos precisos e minuciosos cerimoniais oficiais e familiares por meio dos quais se canalizava a religio, nomeavam com o termo supersticio as formas orientalizantes e exóticas de religião que, sobretudo no Baixo Império, foram minando o caráter puramente convencional da religio oficial, oferecendo seiva vital e sentido à exigência popular de imperiosa salvação.

Superstitio significava, sem dúvida, sobrevivência, algo como um resíduo fóssil do mundo ancestral anterior à hegemonia de Roma. Max Weber sugere que essa palavra queria traduzir o termo grego éxtasis. Diante das religiões extáticas (supersticiosas), remanescentes arcaicas do culto à Magna Deusa (Cibele, Isis, Ishtar, Afrodite celestial) com suas sangrentas cerimônias, como as festas do Taurobólio ou os célebres e terríveis ritos orgiásticos do templo de Hierópolis; diante das impudicas incursões dos galli, automutilados em trágica identificação com Atis, filho da deusa, ou diante dos cultos esotéricos mitraicos, gnósticos ou cristãos, revelou-se a “religião racional” de caráter ritualista e legalista dos genuínos romanos, um culto oficial do Estado ou um exercício privado e familiar de piedade com os ancestrais. Essa religio só pôde obter um horizonte difuso de vitalidade e sentido em virtude de próteses filosóficas estóicas e do platonismo tardio.

No esplendor da autoconsciência europeia, satisfeita e feliz de ter alcançado a idade adulta da humanidade (Kant), reaparece essa velha distinção romana. O Iluminismo, sobretudo o francês, busca tal “religião da razão”, de caráter vagamente deísta e com inflexões sentimentais, uma religião de acordo com a “natureza humana” e com a natureza em geral, radicalmente diferenciada de todas as fraudes “supersticiosas” que as castas sacerdotais e os déspotas insensíveis têm usado para manipular as turbas ignorantes. É nessa clara demarcação que a propaganda ilustrada dos chamados philosophes1, esses arautos do jornalismo moderno, funda sua esplêndida consciência.

As chamadas “filosofias da suspeita” do século romântico e positivista são, a esse respeito, mais refinadas. Herdam os estilos inquisitoriais voltairianos, mas os sutilizam e sofisticam. Sua crítica à religião é indireta e policial: em vez de anatematizá-la no que contém de “superstição”, tentam interrogá-la e abrir-lhe um procedimento judicial no curso do qual revele ao cientista ou ao pesquisador a verdade e o sentido que possui, ainda que sem sabê-lo. A chave desta verdade e deste sentido é reservada, evidentemente, ao pesquisador: este a conhece antes de iniciar tal processo. Em diferentes princípios hermenêuticos, surpreendemos o mesmo procedimento metódico, como nas abordagens à religião de Hegel, Marx, Nietzsche, Freud ou Durkheim.

A religião será, então, entendida como ideologia e falsa consciência, forma opiácea de conduta substitutiva de um mundo sem coração, forma vicária de felicidade, de bonheur em um marco socioeconômico insatisfatório e infeliz, cuja chave do sentido e cuja verdade devem ser buscadas e encontradas na luta de classes e nas relações de propriedade. Isto é, em síntese, a religião para Marx, Engels e seus seguidores.

A religião também será concebida como uma revelação da essência absoluta em forma e representativa em figura, a metade do caminho entre a arte e a filosofia: uma revelação que não alcançou, no entanto, a forma ajustada à Verdade, sua forma conceituai. Assim a entenderá Hegel, seguido por seus discípulos ortodoxos. Também se entenderá por religião uma projeção abstrata e alienada da essência humana, ou do homem como ser genérico, incluindo, da mesma forma, o paradigma de toda alienação do homem no abstrato e separado. De certo modo, o trinitarismo cristão já haveria revelado essa verdade do evangelho humanista, ainda que de uma forma indireta. O cristianismo, religião do ser humano, haveria adiantado, de maneira todavia errada, o descobrimento antropológico da ciência e da filosofia verdadeira: isso para Feuerbach.

Também se pode entender por religião a expressão e o sintoma de uma vontade de poder que decai, a manifestação de uma vontade enferma procurando contagiar toda vontade afirmativa com o sentimento que envenena suas entranhas: um sentimento que é ressentimento, desejo de vingança e luta até a morte contra todo o vital e tudo o que sobressai. Assim, surge um poder sacerdotal capaz de inverter estimativas e valores ou de conceber o simplesmente mau, nocivo e indesejável (Schlecht) como o maligno e o predador (Böse).

A religião será, então, em suas formas mais visíveis, esse contravalor criado pelas castas sacerdotais; ou será também, em suas formas mais sublimes (Gautama Buda, Jesus de Nazaré), a expressão quintessencial de uma vontade de poder que se precipita até o ocaso e que, como último lamento antes de consumar sua absoluta auto-anulação, anuncia o evangelho (ou des-evangelho) do nada: Nietzsche.

Por último, à religião será dado o estatuto de uma ilusão que se opõe inutilmente à necessidade e ao destino (expressos pelo “princípio de realidade”). Nos períodos secularizados, nos quais predomina o homem interior, essa ilusão refugia-se na privacidade recôndita do sujeito individual, fornecendo todo a sortida panaceia das neuroses comuns.

A ilusão religiosa atua, portanto, como motor inconsciente: arranha e imobiliza o próprio corpo por meio de complexos sistemas míticos, tal como ocorre na histeria; regulamenta a mais íntima e vergonhosa privacidade por meio de complexas cerimônias rituais, como ocorre na neurose obsessiva; gera construções teológicas ou teogônicas que confundem o sujeito desdobrado pela dupla figura do perseguidor e do perseguido, como acontece na paranóia; ou eleva a um estatuto idólatra o lado morto e perdido do sujeito desdobrado, em relação ao qual o lado vivo do sujeito guarda a dor e veste-se de luto, como ocorre na melancolia.

O espírito absoluto hegeliano e a trindade arte, religião e filosofia permanecem nesse diagnóstico de Freud e seus seguidores, convenientemente desmascarados. A religião, em sua vertente artística, manifestar-se-ia na histeria; em sua modalidade filosófica e teológica, na obsessividade e na melancolia.

E inegável a força explicativa de todas as variantes discutidas na filosofia da suspeita, nas quais o fenômeno e a experiência religiosa passam pelo julgamento e veredicto de um determinado conceito de razão (idealista, materialista, genealógico ou psicanalítico). Mas não se pode, nessas abordagens, ignorar um método de difícil discussão: em todas elas a religião é explicada de fora de si mesma. Parte-se da premissa, racionalista e ilustrada, de que a religião, por si mesma, é ilusão, ideologia, conceito inadequado, enfermidade, falsa consciência.

Sua verdade e seu sentido não podem se encontrar no horizonte da experiência e no espaço de jogo (jogo linguístico ou pragmático) no qual se manifesta. Supõe-se que sua verdade e seu sentido se encontrem atrás, sempre atrás, num substrato inconsciente ou subjacente do qual o filósofo, o cientista ou o pesquisador deve remover os espinhos (e o qual deve também desmascarar).

A religião, na medida em que é cobaia da razão, é conduzida até o tribunal da ciência, da razão (ou da genealogia da vontade de poder), com o objetivo de ser examinada, interrogada, experimentada e questionada. Toda a riqueza e variedade da experiência religiosa e dos “jogos linguísticos” por ela promovidos é então reconduzida, seguindo sua inconsciente verdade, até essa via de mão única que, de maneira autoritária, se estabelece em tais discursos como razão exclusiva.

Mas talvez seja o momento de dizer, em voz alta e com toda a clareza e contundência, que lógos e razão não têm o mesmo sentido. Lógos é o signo que distingue o sujeito humano, o que o identifica e capacita como humano. E esse lógos manifesta-se e esparrama-se em uma multidão, complexa e misturada, o que Wittgenstein chamou de “jogos linguísticos”. Cada um desses jogos tem, em princípio, sua lógica imanente, sua verdade e seu sentido. E mais, são jogos “linguísticos” nesse sentido radical (antropológico e ontológico), que permite pensar a linguagem como o que distingue o humano propriamente dito.

[DERRIDA, Jacques e VATTIMO, Gianni (org.). A religião : o seminário de Capri. São Paulo: Estação Liberdade, 2000]