Excertos de "Santa Verônica e o Sudário"
Um centro importante do cristianismo primitivo, Edessa (hoje Urfa, na Turquia) é o nome grego de Urhai ("Ocidental" em aramaico), uma cidade antiga no noroeste da Mesopotâmia, a 70 milhas a leste do Eufrates, e que teve seu desempenho já nos tempos primitivos babilônicos-assíricos, quando era habitada por Hititas e Semitas. Na época assíria posterior, a população, em sua maioria, falava o aramaico, e há alguma evidência de que os judeus se haviam instalado na vizinhança de Urhai em fins do século VII a.C. A cidade foi remodelada e chamada de "Edessa" em 304 a.C. por Seleucus I Nicator. Em 132 a.C. Edessa se tornou a capital do Estado de wp-pt:Osroena e o assento de uma dinastia local de reis, a maioria dos quais levava o nome de Abgar. Sua posição era bastante delicada, entre dois impérios em luta, o Partho e o Romano. Por certo tempo, a predominância Partha sucumbiu à armênica, e no tempo das expedições de Lucullus, Pompeu e Crassus, Edessa foi um aliado de Roma. No ano 114 d.C. o rei Abgar VII procurou cativar Trajano, mas em 116 a cidade ergueu-se novamente contra Roma e foi saqueada pelo exército imperial. Adriano restaurou Edessa como uma dependência de Roma, mas quando sob Marco Aurélio a Mesopotâmia foi recuperada da Parthia, Harram foi escolhida como a capital da colônia romana no lugar de Edessa.
Cidade no cruzamento de estradas, Edessa participou da cultura helenística da Síria, mas foi influenciada pelo Ocidente e pelos Orientes Próximo e Extremo — Palestina, Arábia, Egito, Babilônia, Pérsia, índia e China. Tinha uma população mista de judeus, árabes, sírios e gregos, e uma identidade multirreligiosa. A linguagem comum era o aramaico. Uma guarnição romana ficava estacionada na cidade, e as sinagogas coexistiam com santuários de várias divindades astrais, o deus-sol Shamash, os gêmeos Nergal e Sin, representados talvez por um par de pilastras e ligados aos gregos Dioscuri, Aziz e Monim, provavelmente idênticos a Phosphorus (estrela da manhã) e Hesperus (estrela do anoitecer), e Bel (Júpiter) e Nebo (Mercúrio), os deuses favoritos de Abgar o Negro, contra quem Addai prega: "Eu vi nessa cidade que há uma grande abundância do paganismo, que é contra Deus. Quem é esse Nebo, um ídolo fabricado que vocês veneram, e Bel, que vocês honram?... Banhom Nical... e também o sol e a lua. .. Não sejam cativados pelos raios das luminárias e da estrela brilhante" (Doutrina de Addai, pp. 23-5).12 Astarté-Vénus era adorada em Edessa sob o nome de Atargatis, e os peixes, talvez sagrados a ela, eram mantidos nas piscinas da cidadela. O cristianismo chegou em wp-pt:Osroena no decurso do século II.
Partes do Novo Testamento foram então traduzidas ao siríaco, um dialeto do aramaico que era falado na região. No declínio do século III d.C., o rei Abgar IX bar Ma'nu (179-214) converteu-se à nova fé e logo o país seguiu seus passos. A Igreja primitiva de língua siríaca não usava os evangelhos, mas sim o Diatessaron de Taciano, "uma harmonia de nossos Quatro Evangelhos, condensados em uma narrativa, combinando, mais que selecionando, as palavras de Mateus, Marcos, Lucas e João". Somente no início do século V, sob o episcopado de Rabbulla, bispo de Edessa de 411 a 435, a Peshitta, uma versão siríaca das escrituras canônicas do Novo Testamento, começou a substituir o Diatessaron.
A cultura cristã de Edessa e, mais genericamente, da Síria e da Capadócia foi moldada pelo choque de duas grandes tradições: a atitude não icônica da população semita, propensa a sucumbir a heresia Monofisita questionando o dogma da existência dual de Cristo como Deus e Homem e portanto hostil à representação, e aquela dos gregos, devotados à representação pictórica e apoiando portanto a linha ortodoxa. Consequentemente, algumas das primeiras disputas entre o método antigo judaico da Palavra e o novo cristão da Encarnação Palavra-Imagem verificaram-se dentro e ao redor de Edessa, com os círculos judeus, árabes e sírios em sua maioria desprezando a representação, e a comunidade grega apoiando-a fortemente.
A controvérsia refletiu-se nas lendas da carta (v. Correspondência Abgaro-Jesus) e do retrato de Jesus (v. Primeiras Imagens de Jesus). Elas datavam às origens do cristianismo — de uma maneira típica para toda a mitologia — nos tempos quando Jesus ainda vivia, de modo que no século IV acreditava-se que a igreja edessena havia começado durante a sua vida, quando Osroene era governada pelo rei Abgar V o Negro (13-50 d.C.). A existência de uma carta de Jesus — ou o que esse pedaço de escrita pudesse ter sido — foi documentada no final do século IV. A pedante peregrina Egéria, que visitou a região entre 381 e 384 e se encontrou com o bispo de Edessa, conta que ele a levou ao portão pelo qual o mensageiro de Abgar havia chegado de Jerusalém e leu para ela "as cartas verdadeiras" (ela não tem nada a dizer sobre o retrato de Cristo). Os edessenos consideravam a carta de Jesus como o principal profilático da cidade, e apesar de um símbolo romano de 494-5 tê-la declarado falsa, a carta continuou a ser aceita como autêntica por muito mais tempo na Igreja Oriental.17
Edessa foi poupada de assaltos por um longo período, e essa boa sorte foi atribuída à presença da carta de Cristo. Mas na primeira metade do século VI aumentaram os conflitos entre os romanos e os persas, durante os quais o Rei Chosroes I da Pérsia avançou para a Mesopotâmia e atacou Edessa. Em 540 ele sitiou a cidade por duas vezes, e por duas vezes teve que se retirar, uma vez devido a uma dor reumática em sua face, outra por causa de um mau agouro. Entretanto, ele voltou em 544, e dessa vez a situação tornou-se crítica. Não era mais, como coloca Procópio, uma campanha contra o Império Romano, mas "contra o Deus a quem os cristãos reverenciam", e sua promessa de proteger Edessa através do poder mágico de sua carta inscrita sobre o portão da cidade. Para transpor as altas e robustas paredes e penetrar na cidade por cima, os persas começaram a construir uma grande torre. Mas antes que ficasse pronta, os defensores cavaram por baixo dela, fizeram uma câmara, encheram-na de matérial inflamável e atearam fogo. A elaborada construção persa começou a queimar por baixo, e quando acabou de ser consumida, os Chosroes fugiram.
Quarenta anos mais tarde Evagrius (cerca de 536-600), um historiador da Igreja e bispo de Edessa, repetiu a história de Procopius até o ponto em que a câmara subterrânea pegou fogo, e depois disso deu-lhe uma versão inesperada. O fogo, disse ele, não pegou, e em "profunda perplexidade" os romanos trouxeram
a imagem divinamente trabalhada que as mãos do homem não formaram, mas Cristo, Nosso Senhor, enviou a Abgar devido ao seu desejo em vê-lo. Como consequência, tendo introduzido essa imagem sagrada na mina e lavado-a com água, respingaram um pouco sobre o madeirame; e o poder Divino estando presente na fé daqueles que assim fizeram, o resultado conseguido foi aquele que teria sido impossível: a madeira pegou fogo imediatamente e, sendo num instante reduzida a cinzas, comunicou com as de cima e o fogo se espalhou em todas as direções... No terceiro dia as chamas foram vistas saindo da terra e os persas no monte tomaram consciência de sua situação infeliz... (e) desejavam extinguir a fogueira mudando todos os cursos d'água... O fogo, entretanto, recebendo a água como se fosse óleo, ou enxofre... aumentava constantemente, até que cobriu totalmente o monte inteiro e reduziu o amontoado a cinzas. (História da Igreja, 4.27)
O relato de Evagrius indica que Edessa possuía a "verdadeira" imagem de Jesus. Se fosse isso, por que Procopius não a mencionou? Como Procopius estava sediado em Constantinopla e perto dos círculos imperiais, ele deve ter sido relutante em apresentar a vitória do exército romano como devida a um milagre e não à força militar. Mas Dobschütz sugere que Evagrius introduziu o acheiropoietos de Cristo deliberadamente (a primeira vez em que o termo foi usado em relação à imagem edessena) como um argumento contra sentimentos antiicônicos. Ganhando com a tradição estabelecida pela Doutrina de Addai, o esperto bispo deve ter desejado criar a impressão de que o quadro teria estado na cidade desde que foi trazido de volta de Jerusalém.
Por que nós imaginamos que Evagrius falsificou a história? Na época do ataque persa, Jacob bar Addai (ou Baradaeus, 541-78) agiu como o bispo de Edessa. O teólogo sírio era conhecido como um organizador agressivo da Igreja Monofisita. Sua doutrina contestava a dualidade aventada em função da encarnação de Jesus, e assim encontrou-se enfrentando a doutrina do Concílio de Calcedônia (451) — que declarava que Cristo era dotado de duas naturezas, cada uma perfeita e distinta da outra, e era ao mesmo tempo Deus e Homem — e contra o centro eclesiástico em Constantinopla. Nessa situação, a comunidade grega local deve ter decidido espalhar rumores da real presença do quadro de Abgar, e Evagrius, famoso pelo seu conhecimento e ortodoxia, deve ter desejado emprestar sua pena à causa pró-icônica e introduziu en pas-sant a melhor maneira de sugerir que algo esteve por lá sempre, uma imagem que antes só existiu na lenda. Seu relato deixa claro que o exército precisava muito de um talismã poderoso para defender Edessa contra os inimigos externos. Portanto, não é improvável que o retrato miraculoso de Cristo tivesse sido criado com um olho em círculos militares. Mas o exército imperial e os gregos próximos a Constantinopla precisavam dos acheiropoietos de Cristo também como amuleto contra um inimigo interno.