Escrituras Advento

THOMAS MERTON — TEMPO E LITURGIA

O SACRAMENTO DO ADVENTO NA ESPIRITUALIDADE DE SÃO BERNARDO (cont.)

AS ESCRITURAS COMO ADVENTO

Nosso viaticum na peregrinação da Igreja do primeiro ao terceiro Advento é a palavra de Deus. Isso deveria ser totalmente óbvio, uma vez que, desde o início, temos falado do “mistério de Cristo” ou o “Sacramento do Advento”, que é a presença de Cristo no mundo, operando o plano divino para restaurar todas as coisas em Si e levá-las ao Pai. Ora, essa obra de Cristo realiza-se em nós pela fé, que se expressa pela caridade (Gál 5,6). Mas a fé vem “pelo ouvido”, e o ouvir através da palavra de Cristo (Rom 10,16). Só assim todos os que clamam pelo Nome do Senhor serão salvos. Pois se não souberem o seu Nome, como poderão clamar por Ele?

É de toda importância compreender de que maneira a palavra de Deus, sermo Dei, penetra em nossas vidas para santificá-las e alimentar a vida de Cristo (em nós) que é “Sacramento” de seu Advento secreto e pessoal em cada cristão.

São Bernardo cita mais uma vez o quarto Evangelho: quando observamos a palavra de Deus, o próprio Deus habita em nós. (Serm. 5, Adv., n.2.) Para que Deus possa vir ao íntimo de nossos corações, temos de conservar sua palavra no nosso santuário interior. In corde meo abscondi eloquia tua (Sl 118,11). Mas que significa conservar estas palavras em nosso coração? Rememorá-las? Pensar nelas? Isso não basta. De fato, preservar a palavra de Deus em nossas mentes, como objeto de especulação, é produzir em nós a ciência que incha (1 Cor 8,1). Além disso, o que está na memória apaga-se facilmente pelo esquecimento.

O pão material deste mundo, se for guardado num armário, pode ser roubado por um ladrão ou ali mesmo mofar. Assim, a palavra de Deus nos é inútil se for meramente “armazenada” em nosso espírito ou na memória. Assim como comemos o pão material e com ele alimentamos nossos corpos, assim também devemos comer o pão da vida e alimentar nossas almas. Comer a palavra de Deus é, em primeiro lugar, absorvê-la nas profundezas de nosso ser, por uma fé obediente e amorosa, em seguida deixar o poder da Palavra se expressar na atividade vital própria à fé: nas obras de amor, nos bons hábitos, na vida perfeita. Isso é, pois, o que alimenta e encanta nossa vida no “segundo Advento”.1 Quando somos alimentados pela palavra de Deus na Escritura, quando vivemos a mensagem divina da revelação bíblica, Cristo toma posse de todo o nosso ser, expulsa o último vestígio de nosso “velho homem” e manifesta sua presença em tudo quanto fazemos.2

Aqueles que não penetram profundamente no Mistério de Cristo, mas se contentam em permanecer na superfície de sua fé, não são realmente nutridos pelo Sacramento do Advento.3 O homem de espírito mundano pode “celebrar” o Mistério do Advento, mas não se alegra nele. Não transborda na rica vida interior que vem do fato de viver o mistério. Ele apenas passa por esse mistério, de maneira rotineira, dies istos quadam árida consuetudine observantes!4

Contudo, São Bernardo admite facilmente que essa penetração contemplativa do Mistério de Cristo, essa conscientização interior que encontra o Cristo velado no Sacramento da Escritura não é algo que podemos adquirir simplesmente por nossos próprios esforços. É verdade que as palavras da Escritura que estão “cheias dos mistérios do céu exigem um leitor diligente que saiba como haurir o mel do rochedo e o óleo da pedra mais dura.5 Contudo, em última análise, essa consoladora iluminação é sempre um dom de Deus, “deixando cair do céu o orvalho”, para que a terra dê seu fruto. Os próprios escritores sagrados possuíam o Espírito Santo. Eles O comunicam em certa medida a nós, com as palavras que escreveram sob sua inspiração. Entretanto, o próprio Deus deve viver em nossos corações, enquanto lemos as Escrituras. É essa ação divina dentro de nós, iluminando-nos para recebê-lo em sua palavra revelada, que é, por assim dizer, a “res sacramenti” do Sacramento do Advento. As palavras com que São Bernardo invoca essa ação divina no início de suas homilias sobre o Missus est fornecem uma belíssima oração a ser empregada antes da leitura meditativa da Bíblia: utinam et nunc Deus emittat verbum suum et liquefaciet ea (aromata) nobis; fiant in cordibus nostris desiderabilia super aurum et lapidem pretiosum multum, fiant et dulciora super mel et favum.6) Traduzido livremente:

Que o Senhor envie sua palavra e os aromas (do texto inspirado) desabrochem para produzir sua fragrância; possam (o sentido do texto) tornar-se para nós mais do que o ouro e a pedra preciosa, e mais doce do que o mel e o favo do mel.



  1. Serm. 5, Adv., n.2 

  2. Serm. 5, Adv., n.3 

  3. Non omnes haec memoria pascit. (Serm. 3, Adv., n.2 

  4. Serm. 3, Adv., n.2 

  5. Hom. 1, sup. Missus est, n.1 

  6. (Hom. 1, sup. Missus est, n.1