Desapego

LIBERAÇÃO — DESAPEGO — DESPRENDIMENTO — RENÚNCIA

VIDE: CITAÇÕES; RENUNCIAR; KATHARSIS


Mestre Eckhart: ECKHART-TERMOS

Excertos do glossário do tradutor, Enio Paulo Giachini, da ótima versão portuguesa dos “Sermões Alemães” de Mestre Eckhart

Traduzir Abgeschiedenheit por desprendimento pode nos levar a entender desprendimento na acepção de renúncia, desapego e abnegação. Como usualmente esses termos são ouvidos na acepção ascético-moral, o desprendimento, principalmente quando aplicado às criaturas, pode ser também interpretado a partir de e dentro do sentido ascético-moral. Em Eckhart desprendimento diz a essência, o ser de Deus, portanto, tem um sentido ontológico. Não se trata aqui, nem em Deus nem na criatura, de renúncia, desapego e abnegação como privar-se de algo, carecer, mas sim da plenitude do ser da liberdade, da plena soltura de ser. A partir e na dimensão dessa plenitude livre de ser é que deveríamos tentar interpretar as categorias ascético-morais de termos como renúncia, abnegação, desapego, limite, finitude, como possibilidades livres da disposição de ser, onde não há a ideia de privação como falta, lacuna, como vazio, mas há simplesmente plenitude concreta, bem determinada. É a limpidez da nitidez pura, livre e “despojada” de tudo que não é ela mesma.

*DA UTILIDADE DO DESAPEGO
*DO DESAPEGO
*O DESAPEGO
*SERMÃO II

Johannes Tauler: TAULER SEGUNDO GIUSEPPE FAGGIN

A razão do “desapego” volta naturalmente também em Tauler, como em todos os místicos, a ocupar um lugar central. Se o homem quer tornar-se divino deve despojar-se de tudo o que não é Deus, deve deixar de ser o que era, repelir tudo o que lhe é próprio e o converte em um determinado indivíduo; não apenas toda a multiplicidade exterior, mas também a interna multiplicidade das forças interiores, as lembranças da própria existência, as imagens, os pensamentos, os atos de vontade, a dualidade entre o sujeito e o objeto, o saber e o conhecimento. O que importa é submergir-se em um nada infinito, conquistar a viva consciência da própria nulidade, para que nesta Deus, o Nada eterno, possa agir como em si mesmo, sem encontrar obstáculos nem perturbações. A escravidão da alma é o cativeiro do Divino; a liberdade da alma é a mesma liberdade de Deus. Mas as mortificações e as renúncias nunca terão fim. Como os cabelos do corpo, as más inclinações crescem novamente em nossa alma e,portanto, é necessário recomeçar cada dia o mesmo trabalho de abnegação e de renúncia, criando assim os bons costumes. Primeiro deverão apagar-se ou enfraquecer-se os impulsos e os instintos da juventude; a vontade deverá fortalecer-se diante das múltiplas experiências; o coração deverá aprender quão vazios são os afetos humanos: somente aos quarenta anos o homem terá a paz verdadeira e se tornará homem angelical. Depois disto será necessário que espere outros dez anos para receber de modo mais elevado e nobre o Espírito santo que ensina todas as verdades. Nestes dez anos, conseguida a vida divina e superada a natureza, é necessário recolher-se no bem puro e absoluto e retornar à própria origem. Se este retorno se realiza devidamente, todas as dívidas serão pagas suficientemente e o homem será bem aventurado e divino, sustentáculo da Igreja e do mundo.


René Guénon: LAÇOS E NÓS

Mesmo no primeiro dos dois pontos de vista que acabamos de mencionar, existe também uma certa ambivalência de outra ordem, referente às diferentes maneiras pelas quais um ser, de acordo com seu grau espiritual, pode apreciar o estado em que se encontra, e que a linguagem traduz muito bem pelas significações que dá à palavra “apego”. De fato, quando se tem apego por alguém ou por alguma coisa, naturalmente se considera um mal a separação, mesmo que essa separação deva na realidade provocar a libertação de certas limitações, às quais se encontra submetido por causa desse próprio apego. De uma forma mais geral, o apego de um ser ao seu estado, ao mesmo tempo que o impede de se libertar dos entraves que lhe são inerentes, faz com que considere uma infelicidade deixar tal estado, ou, em outros termos, atribua um caráter “maléfico” à morte e a esse estado, resultante da ruptura do “nó vital” e da dissolução do agregado que constitui sua individualidade.1 Apenas o ser que, em decorrência de um certo desenvolvimento espiritual, aspira ao contrário ultrapassar as condições de seu estado, pode “realizá-las” como verdadeiros obstáculos, como o são de fato. E o “desapego” que experimenta desde então com referência a esse estado é já, ao menos virtualmente, uma ruptura desses entraves, ou, se preferirmos uma outra maneira de falar, talvez mais exata, pois não existe jamais ruptura no sentido exato do termo, uma transmutação “daquilo que acorrenta” para “aquilo que une”, o que nada mais é no fundo que o reconhecimento ou a tomada de consciência da verdadeira natureza do sutratma.

Frithjof Schuon: O ESOTERISMO COMO PRINCÍPIO E COMO VIA

O desapego: primeiramente constatamos que o apego está na própria natureza do homem; e, todavia, pede-se-lhe que seja desprendido. O critério da legitimidade do apego é que o seu objeto seja digno de amor, isto é, que nos comunique algo de Deus e, principalmente, que não nos afaste dele. Se uma coisa ou uma criatura é digna de amor e se não nos afasta de Deus — em cujo caso ela nos aproxima indiretamente do seu modelo divino — pode-se dizer que nós a amamos “em Deus” e “em direção a Deus”, portanto, em consonância com a “relembrança” platônica e sem idolatria nem paixão centrífuga. Ser desprendido é nada amar fora de Deus nem a fortiori contra Deus; é, portanto, amar a Deus ex toto corde. Mas há ainda outra perspectiva que encontramos em todo ambiente religioso, ou seja, a do ascetismo penitencial. Em vez de partir da ideia de que todo excesso é um mal e que o bem se situa entre dois excessos, como o quer Aristóteles e como o ensina também o Islamismo global, esse ascetismo vê o bem no excesso de desapego; e isso também se justifica, dependendo do ponto de vista, do temperamento, da vocação, do meio. Conforme essa perspectiva, não há excesso: há simplesmente sinceridade e totalidade; todavia, essa atitude não pode ou não quer revelar toda realidade humana ou, mais precisamente, espiritual.

O desapego é o oposto da concupiscência e da avidez. É a grandeza de alma que, inspirada pela consciência dos valores absolutos e, portanto, também da imperfeição e da impermanência dos valores relativos, possibilita à alma a conservação da sua liberdade interior e da sua distância em relação às coisas. A consciência de Deus anula, de certo modo, as formas e as qualidades por um lado e, por outro, lhes confere um valor que as sublima. O desapego faz com que a alma seja como que impregnada pela morte mas, também, em compensação, que tenha consciência da indestrutibilidade das belezas terrestres. Pois a beleza não pode ser destruída; ela se refugia nos seus arquétipos e na sua essência, ou renasce, imortal, na bem-aventurada proximidade de Deus.


NÃO-DUALIDADE
Wei Wu Wei: DESAPEGO

  1. Observe-se que se diz comumente que a morte é o “desenlace”, o “desfecho” da existência individual. Essas expressões, que também têm relação com o simbolismo do teatro, são literalmente exatas, embora aqueles que as empreguem não se deem conta disso.[]