Chouraqui Mateus

EVANGELHO DE MATEUS — ANDRÉ CHOURAQUI

Tomou-se por hábito intitular a primeira parte do Novo Testamento os Quatro Evangelhos. Na realidade, até o século IV os cristãos falavam unicamente do Evangelho ou, em hebraico, Bessora, e em aramaico Bessorta, o único Anúncio de léshoua’ bèn losseph, distinguindo suas quatro partes por referência a seus autores, segundo Matyah (Mateus), Marcos, Loucas (Lucas) e Iohanân (João). Estes quatro livros refletiam, na realidade, a tradição oral e depois escrita dos fatos, das palavras e dos gestos da vida, da morte e do renascimento de Iéshoua’ bèn losseph.

Junto aos evangelhos conservados pelo cânon da Igreja, a tradição manteve textos não canônicos que tratavam da vida do Cristo. A Igreja cristã resistiu às tentativas de uniformização de Marcião, que atribuía valor autoral somente ao livro de Lucas, adotando um único Evangelho, um único Anúncio, mas tetramorfo.

A semelhança de estrutura dos Evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos, Lucas), assim como suas divergências ocasionais, mesmo no interior dos textos paralelos, inspirou a hipótese da utilização recíproca, sustentada pela primeira vez por Santo Agostinho, que supõe que Mateus teria sido o primeiro a escrever seu evangelho; Marcos o teria resumido, enquanto Lucas teria se servido de ambos. Outros intérpretes apresentam a hipótese de um evangelho primitivo redigido em aramaico ou em hebraico e depois transmitido pela memória dos discípulos sob forma de tradições orais. Alguns, enfim, à hipótese de um evangelho primitivo desaparecido preferem a de “diegeses”, fragmentos de narrativa e sentenças (logia) que circulavam na comunidade cristã primitiva: os evangelistas teriam composto suas obras combinando, cada qual a seu feitio, esses elementos. A hipótese das duas fontes, recentemente complementada por pesquisas sobre a formação da tradição neotestamentária, é geralmente aceita pela crítica bíblica. Os evangelistas, ricos em tradições religiosamente reunidas e transmitidas pela Igreja primitiva, teriam se servido igualmente de uma fonte desaparecida (o documento «Q», do alemão Quelle, “fonte”). A maioria dos exegetas supõe que Marcos foi anterior a Mateus (Matyah) e a Lucas (Loucas). Apoiando-se em uma retroversão em hebraico dos evangelhos, Robert L. Lindsay, seguido por David Flusser, volta à tese tradicional, segundo a qual Mateus é o primeiro dos evangelistas. A questão da anterioridade do primeiro evangelho não está perto, como vemos, de ser definitivamente resolvida.
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Mateus resume em 1701 versículos a vida de Ieshoua, de seu nascimento até sua morte, enfatizando sua atividade pública e sua morte; os quatro últimos anos da vida de Ieshoua são expostos em 413 versículos; os 33 anos de sua vida ocupam 658 versículos.

Renan escreveu: o Evangelho de Mateus nos faz entrar num palácio mágico construído inteiramente de pedras luminosas. A narrativa é admiravelmente orientada para o drama da paixão. Sistemático na composição geral de sua obra, Mateus o é também no modo de reagrupar os temas: Ieshoua, evocado nos capítulos 5 a 7 como um grande mestre de justiça, é apresentado, em uma segunda etapa que descreve dez milagres, como um incomparável taumaturgo (8,1-9 a 9,34). A tensão que opõe Ieshoua às outras famílias espirituais de Israel é analisada em uma seção separada (11,2-12 a 50).

Característica é também a constante citação em Matyah da Bíblia hebraica, para ele o termo de referência supremo, de onde Ieshoua extrai toda sua autenticidade e toda a sua legitimidade: Tudo aconteceu para cumprir o que disse YHWH por seu inspirado.

Esta frase, que introduz citações da Bíblia hebraica, reaparece em Mateus cerca de onze vezes, com pequenas variantes. Mateus cita a Bíblia mais de sessenta vezes, sem contar as inumeráveis alusões que faz dela sem mencioná-la explicitamente; para seu auditório de iniciados, uma simples frase, uma simples palavra, remete à matriz bíblica da qual todo o Novo Testamento tem a indestrutível marca.

Mesmo quando a cita em grego na versão dos LXX ou livremente traduzindo ele mesmo um texto que conhece quase de cor, como todos os letrados de Israel, o autor está visivelmente impregnado de hebraísmos. Isto se sente quase a cada palavra: ainda que escreva em grego, ainda que conheça bem o aramaico, ele pensa antes de tudo na língua da Bíblia, em hebraico. Contam-se, assim, 329 casos de semitismos flagrantes em Mateus, que recorre freqüentemente a expressões judaicas tomadas de empréstimo às liturgias das sinagogas e do Templo. A retroversão de Mateus em hebraico escorre como a água da fonte e nos permite ler este evangelho não palavra por palavra, como em grego, mas pelo espírito.

Os paralelismos que caracterizam o estilo da Bíblia hebraica são cultivados por Mateus a ponto de fazer deles um procedimento: a comparação entre Mateus 7,24-27 e Lucas 6,47-49 é significativa neste sentido. Paralelismos, quiasmos, inclusões, citações de palavras ou sentenças revelam com evidência um autor hebreu vivendo em um meio da Judeia e de tradições judaicas, do ensinamento da Bíblia e das tradições dos rabis. Exatamente sobre isso escreveu Beda Rigaux: o húmus do primeiro evangelho é semítico, vetero-testamentário e palestino”.

Estas características se manifestam também no uso que Mateus faz dos números 2, 3, 5, 7. Ele define três tentações ou provas (4,1-11); três plantas: menta, cominho, funcho; três virtudes: justiça, matricialidade, adesão; três exemplos de justiça: justificação, oração, jejum (6,1-18); três súplicas no Getsêmani (26,39-44); três renegações de Petros (Pedro) (26,69-75); três máximas sobre a árvore e seus frutos; relata a imersão de Ieshoua em três estrofes de três linhas e nove verbos entre cerca de trinta séries dominadas pelo número três.

O sete, número perfeito para os hebreus, volta muito freqüentemente sob sua pena: característica é a tripla série de quatorze (7×2) gerações de ancestrais de Ieshoua em Mt I, correspondente aos múltiplos setênios do Apocalipse.