CASSIANO — CONFERÊNCIAS
PRIMEIRA CONFERENCIA DO ABADE MOISÉS — DA META E DO FIM DO MONGE
XX. O discernimento dos pensamentos a exemplo do cambista perito
Devemos, portanto, sempre ter em vista esta causa tríplice dos nossos pensamentos e examinar com sagaz discernimento todos os que emergem em nosso coração. É preciso indagar desde o princípio as suas origens, causas e autores, a fim de podermos considerar, segundo o mérito do que sugerem, como os devemos acolher. Assim nos tornaremos cambistas peritos, segundo o preceito do Senhor (Mt 25 27).
Sua arte e perícia, com efeito, consiste em reconhecer o que é ouro puríssimo e o que foi menos purificado pelo fogo no cadinho. No seu bem atilado discernimento, ele não se deixa enganar, se uma peça vil de cobre tenta imitar, com as aparências de ouro brilhante, uma moeda preciosa. Pois não só sabe reconhecer as peças cunhadas com a efígie de tiranos, mas também discernir com perícia mais sagaz as que, embora trazendo a imagem dum rei verdadeiro, são dinheiro falsificado. Finalmente, investigam cuidadosamente, ao exame da balança, se nada lhes falta do legitimo peso.
Tudo isto nós também devemos observar espiritualmente, como nos mostra em exemplo, com este nome de cambista, a palavra do Evangelho.
Assim é que nos cumpre, em primeiro lugar, examinar com o maior cuidado tudo quanto se introduz sorrateiramente em nossos corações, ou qualquer preceito que nos seja apresentado, a ver se não é, acaso, algo ligado à superstição judaica ou proveniente da orgulhosa filosofia do século, que apresenta uma piedade de mera superfície. Isto poderemos fazer, se cumprirmos aquela palavra do Apóstolo: “Não creias em qualquer espírito, mas provai os espíritos se são de Deus” (l Jo 4,1).
Nesta espécie de erros cairam, enganados, aqueles que, depois de ter feito profissão de monge, se deixaram iludir por belas palavras e certas sentenças de filósofos, que, à primeira vista, lhes soavam com sentido piedoso e de acordo com a religião. Enganadoras em seu brilho exterior de ouro, elas deixaram para sempre nus e miseráveis aqueles que seduziram por sua aparência, como moedas de cobre vil e falsificadas, seja fazendo-os voltar ao barulho do mundo, seja por arrastá-los a erros heréticos ou a opiniões orgulhosas.
Foi o que sofreu Acor, como lemos no livro de Jesus, filho de Navé. Tomado pela cobiça, ele furtou um lingote de ouro do acampamento dos Filisteus, merecendo por isto ser punido de anátema e condenado à morte eterna.
Em segundo lugar, convém observar com todo cuidado que, ligado ao ouro puríssimo das Escrituras, uma falsa interpretação não nos engane por causa do metal precioso. Foi neste ponto que o demônio, muito esperto, tentou enganar o nosso Salvador, como se se tratasse de um simples homem. Corrompendo com uma interpretação maliciosa o que deve ser entendido das pessoas dos justos em geral, ele tenta explicá-lo de modo especial àquele que não precisava da guarda dos anjos: “Ele ordenou a seus anjos por causa de ti, que guardem em todos os teus caminhos; e eles te transportarão em suas mãos, para que não batas o teu pé contra as pedras” (Mt 4,6;Sl 90, 11-12).
Como se vê, ele assim transmuda, por uma astuta interpretação, as preciosas palavras da Escritura, torcendo-as num sentido contrário e nocivo, para nos apresentar, sob as cores do ouro falso, a imagem dum tirano usurpador.
O mesmo acontece, quando ele se esforça por nos iludir com moedas falsas, aconselhando, por exemplo, alguma obra de piedade que não provém da cunhagem legítima dos antigos e, sob pretexto de virtude, nos leva ao vício. São jejuns imoderados e inoportunos, vigílias excessivas, orações desordenadas, leituras inconvenientes com que nos logra e arrasta a um fim desgraçado.
Outras vezes, ele nos persuade a fazer intervenções e visitas piedosas, a fim de nos tirar da clausura espiritual do mosteiro e do segredo duma paz amiga. Ou também nos leva a assumir os cuidados e assuntos de Religiosas destituídas de recursos, para que o monge, prisioneiro desses laços de que não pode soltar-se, se veja dividido por preocupações perniciosas. Ou então ele nos instiga a desejar a santa função da clericatura, sob pretexto de edificação de muitos e por amor do lucro espiritual, para nos arrancar, com isto, à humildade e austeridade do nosso propósito. Embora tais coisas sejam contrárias a nossa salvação e profissão, como, no entanto, se cobrem de certo véu de misericórdia e piedade, facilmente enganam os inexperientes e incautos.
Elas imitam as moedas do rei verdadeiro, pois parecem, à primeira vista, cheias de piedade, mas não foram cunhadas pelos legítimos moedeiros, isto é, os Padres católicos e aprovados, nem procedem da oficina do seu firme e autorizado ensinamento. São moedas clandestinas, fabricadas em fraude pelos demônios e passadas, com grande dano, aos inexperientes e ignorantes.
Conquanto pareçam no momento úteis e necessárias , se, contudo, começam depois a ser contrarias à solidez da nossa profissão e a pôr em risco, de certo modo, todo o corpo do nosso propósito. Importa à nossa salvação cortá-las e lançá-las fora, como a um membro que, embora necessário, nos escandaliza, mesmo que nos pareça exercer a função de mão ou pe direito. É preferível, de fato, ter um membro a menos, isto é, privar-se da realização e do fruto de um preceito, e continuar são e firme quanto aos outros e, depois entrar, amputado, no reino dos céus; a cair,com todos os mandamentos completos, em algum escândalo. Transformado em pernicioso habito, ele nos separaria da regra de austeridade e da disciplina do projeto de vida que abraçamos, para lançar-nos numa tal ruína, que, sem poder compensar os danos futuros, exponha ao fogo do inferno todos os nossos frutos passados e o corpo inteiro das nossas obras (cf. Mt 18,8).
Deste gênero de ilusões, o livro dos provérbios fala bem a propósito: “Há caminhos que parecem retos ao homem, mas o seu final é o fundo do inferno”(Prov 16,25). E também: “O maligno prejudica quando se une ao justo (id 11,25), vale dizer, o demônio engana, quando se cobre com as cores da santidade. “Ele odeia a palavra que protege”, isto é, o vigor da discrição que procede das palavras e conselhos dos antigos.