CASSIANO — CONFERÊNCIAS
PRIMEIRA CONFERENCIA DO ABADE MOISÉS — DA META E DO FIM DO MONGE
XIV. Da imortalidade da alma
Por este motivo, saiba cada um desde agora, enquanto se acha neste corpo, que lhe caberá aquele lugar e ministério do qual na vida presente ele se mostrar um membro devotado. E não duvide, também, que no século eterno ele terá a mesma sorte daquele cujo serviço e companhia tiver agora preferido. É a sentença do Senhor que diz: “Se alguém me quer servir, me siga, e onde eu estou, lá estará o meu ministro” (Jo 12,26).
Assim como alguém acolhe pela conivência no vício o reino do diabo, assim também possui o de Deus pela prática das virtudes na pureza de coração e na ciência espiritual. Mas onde está o reino de Deus, aí esta, fora de dúvida, a vida eterna. E lá onde está o reino do diabo, aí, com toda certeza, está igualmente a morte e o inferno, onde aquele que lá estiver, nem pode louvar o Senhor, segundo a sentença do profeta que diz: “Os mortos não vos louvarão, Senhor, nem todos os que descem para o inferno” (sem dúvida, o do pecado). “Mas nós, continua ele, que vivemos (não para o vício, nem para este mundo, mas para Deus), bendizemos o Senhor, desde agora e para sempre” (SI 113,17-18). “Porque não há ninguém na morte, que se lembre de Deus; no inferno (do pecado), quem louvará o Senhor?” (SI 6,6). O que significa ninguém.
Ninguém, na verdade, embora milhares de vezes se professe cristão ou monge, louva o Senhor, quando peca. Ninguém se lembra de Deus, se comete aquilo que o Senhor abomina, nem se diz com verdade servo daquele cujos mandamentos despreza por contumaz temeridade.
É dessa morte, que a viúva que vive nas delícias esta morta, como afirma o Apóstolo: “A viúva que vive nas delícias, está morta, embora vivendo”(1 Tim 5,6).
Existem, pois, muitos que, mesmo se vivem neste corpo, são mortos e, jazendo no inferno, não podem louvar a Deus. Mas, de outro lado, existem os que, mortos no corpo, bendizem e louvam a Deus pelo espírito, segundo esta palavra: “Bendizei o Senhor, espíritos e almas dos justos” (Dan 3,86) e ainda: “Todo espírito louve o Senhor” (SI 150,6).
E no Apocalipse é dito que as almas dos imolados não só louvam a Deus, mas ainda gritam por ele (Cf. Apoc 6,9-10). E no Evangelho, o Senhor fala mais claramente ainda aos Saduceus, dizendo: “Não lestes o que vos foi dito por Deus: Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó? Ele não é um Deus de mortos, mas de vivos”(Mt 22,31-32). Todos eles vivem para Deus. Referindo-se a eles, diz também o Apóstolo:”Por isto, Deus não se envergonha de ser chamado seu Deus, porque lhes preparou uma cidade” (Heb 11,16).
Que as almas depois de separadas de seus corpos nem ficam ociosas nem deixam de sentir, mostra-o também a parábola evangélica do pobre Lázaro e do rico vestido de púrpura. Um merece o lugar da suprema felicidade, o repouso no seio de Abraão; o outro é abrasado pelo intolerável ardor do fogo eterno (cf. Lc 16,18 ss).
Se quisermos, igualmente, prestar atenção ao que foi dito ao ladrão: “Hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43), qual é o seu sentido manifesto, senão que perduram nas almas não só os seus conhecimentos anteriores, mas também que elas gozam duma conveniente mudança conforme a qualidade dos seus méritos e ações.
O Senhor nunca lhe teria feito esta promessa, se soubesse que sua alma, depois de separada do corpo, deveria ser privada de sentimento ou dissolvida no nada . Não era seu corpo, mas sua alma, que devia entrar com Cristo no paraíso.
Devemos, pois, evitar, ou melhor abominar com horror, aquela perversa distinção de certos heréticos que, não crendo que o Cristo tenha podido achar-se no céu no mesmo dia em que desceu aos infernos, assim cortam a frase: “Em verdade eu te digo hoje” e, pondo aí uma divisão, acrescentaram: “Estarás comigo no paraíso”.
E como se devesse entender a realização da promessa não imediatamente após a passagem desta vida, mas somente depois da vinda da ressurreição. Eles não compreendem aquilo que, antes da sua ressurreição, ele disse aos judeus, que o criam preso, como eles, aos limites estreitos do humano e a fraqueza da carne: “Ninguém sobe ao céu, senão aquele que desceu do céu, o Filho que está no céu” (Jo 3,13).
Tudo isto prova claramente que as almas dos defuntos não só continuam dotadas de seus sentimentos, mas até mesmo não deixam de ter afetos tais como esperança e tristeza, alegria e medo. E que já começam a antegozar algo de quanto lhes é reservado no juízo final. E, enfim, que elas não se dissolvem no nada após a saída deste mundo, conforme opinião de alguns incrédulos, mas, ao contrário, subsistem num modo mais vivo e se entregam mais intensamente ao louvor de Deus.
E, de fato, se, deixando por um momento o testemunho das Escrituras, passo a disputar um pouco sobre a natureza da alma, segundo a mediocridade da minha razão, não é, acaso, para lá não digo só da frivolidade, mas da loucura, supor mesmo de leve que aquela parte mais preciosa do homem, que traz em si, segundo o Apóstolo, a imagem de Deus e sua semelhança, possa tornar-se insensível, justamente ao depor o fardo corporal que agora a embota?
Ela que contém em si a força da razão e faz, por seu consórcio que a matéria muda e insensível da carne se torne sensível, é absolutamente lógico e conforme a reta ordem da razão, concluir que, uma vez livre desta gordura carnal que a entorpece, ela recobra em melhores condições as suas forças intelectuais e, em lugar de perdê-las, as recebe de volta, mais puras e mais sutis.
O bem-aventurado Apóstolo é a tal ponto convencido da verdade que dissemos, que chega a desejar sair da carne, para assim poder unir-se mais intimamente ao Senhor: “Tenho o desejo de ir-me embora e de estar com Cristo, o que é muito melhor” (Fil 2,23), “porque enquanto estamos no corpo, somos em exílio longe do Cristo” (2 Cor 5,6). Por isto, “temos confiança e preferimos, de boa mente, exilar-nos do corpo e estar junto do Senhor. É também por esta razão que nos esforçamos, seja ausentes seja presentes, para agradar-lhes” (id.8-9). Assim, declara ele que a habitação da alma na carne é um exílio longe do Senhor e uma ausência em relação a Cristo, ao passo que confia com toda fé que a separação deste corpo é presença junto de Cristo.
Com maior clareza, ele fala, em outra passagem, desse estado vivíssimo das almas: “Vós vos aproximastes da montanha de Sião e da cidade do Deus vivo, da Jerusalém celeste, e da multidão de milhares e milhares de anjos, e da assembleia dos primogênitos inscritos no céu e dos espíritos dos justos prefeitos”(Heb 12,22-23). Referindo-se a estes espíritos em outro lugar, ele diz: “Depois tivemos como mestres os nossos pais segundo a carne e os respeitávamos; com maior razão não nos haveremos de submeter-nos ao Pai dos espíritos para que vivamos?” (id 8-9).