CASSIANO — CONFERÊNCIAS
CONFERÊNCIA XV — SEGUNDA CONFERÊNCIA DO ABADE NÉSTEROS — DOS CARISMAS DIVINOS
I. Explicação do abade Nesteros sobre a tríplice forma dos carismas
Depois da sinaxe vespertina, nós nos assentamos juntos nas esteiras, como de costume, de todo atentos a conferência prometida. Como guardássemos o silêncio por algum tempo, em reverência ao ancião, ele rompeu o nosso respeitoso silêncio com o seguinte discurso.
A sequência da nossa precedente conversação nos conduziu até ao ponto de pôr em foco a natureza dos carismas espirituais. A tradição dos antigos nos ensina que ela se divide em três partes.
A primeira causa do dom das curas verifica se quando, pelo mérito da santidade, a graça dos sinais acompanha todos os eleitos e justos. É manifesto que os apóstolos e uma multidão de santos fizeram sinais e prodígios, segundo a ordem do Senhor, que lhes disse: “Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, purificai leprosos, expulsai demônios; recebestes de graça, dai gratuitamente” (Mt 10,8).
A segunda é quando, para a edificação da Igreja, ou em respeito da fé daqueles que oferecem os seus doentes ou dos próprios enfermos, a virtude da cura procede até mesmo de pecadores e de indignos. É deles que o Salvador diz no Evangelho: “Muitos me dirão nesse dia: Senhor, Senhor, acaso não profetizamos em vosso nome, ou não expulsamos demônios em vosso nome, e fizemos em vosso nome muitos milagres? Então, eu lhes direi em alta voz: Não vos conheço; afastai-vos de mim, operários da iniquidade” (Mt 7,22-23).
Ao contrário, a falta de fé entre os enfermos ou aqueles que os apresentam, não permite também aos que receberam o dom das curas exercer o seu poder. Sobre isto diz o evangelista: “Jesus não pode fazer milagres entre eles, por causa da sua incredulidade” (na realidade é Mc 6,5-6). Donde o mesmo Senhor declara: “Havia muitos leprosos em Israel, nos dias do profeta Eliseu, mas nenhum deles foi curado, e, sim, somente o sírio Naaman” (Lc 4,27).
A terceira espécie de cura e uma simulação devida a uma brincadeira e logro dos demônios. Como é o caso de alguém envolvido em crimes manifestos, mas que é admirado por seus milagres e tido como santo e servidor de Deus, servindo aos espíritos malignos como meio de persuadir os outros a imitá-lo mesmo em seus vícios. Com isto, abre-se a porta da difamação, e a própria santidade da religião é desacreditada. Ou, pelo menos, aquele que se crê dotado com os dons das curas, transportado pela soberba do coração, cairá de uma queda mais violenta.
Daí vem que os demônios gritam o nome das pessoas, que eles sabem desprovidas de santidade e de quaisquer frutos espirituais, como se os seus méritos fossem para eles um fogo insuportável que os expulsa do corpo dos possessos.
Dessas pessoas é que diz o Deuteronômio: “Se se levanta no meio de vós um profeta ou alguém que diz ter tido um sonho, e se ele te prediz um sinal ou um prodígio, e o que ele diz se realiza, e se ele vos disser: Vamos e sigamos os deuses estrangeiros que ignorais e sirvamos a eles, — não escuteis as palavras de tais profetas ou sonhadores, porque o Senhor vosso Deus, vos experimenta, a fim de que a pareça claramente se o amais ou não, de todo vosso coração e de toda vossa alma” (Deut 13,1-3). Também no Evangelho se diz: “Levantar-se-ão falsos cristos e falsos profetas, e eles farão grandes sinais e grandes prodígios, a ponto de induzir em erro até mesmo, se possível, os eleitos” (Mt 24,24).
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