Cassiano Collatio XIV-15

CASSIANO — CONFERÊNCIAS

PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE NÉSTEROS — A CIÊNCIA ESPIRITUAL

XV. Objeção pelo fato de que muitos impuros têm a ciência, enquanto muitos santos não a possuem

Germano: Esta afirmação não nos parece absolutamente fundada na verdade, nem apoiada em razão provável. Todos aqueles que recusam totalmente a fé de Cristo ou a corrompem por doutrinas ímpias e perversas, não possuem evidentemente um coração puro. Como, então, pode acontecer que muitos judeus e também heréticos, e até os católicos que se deixam envolver por vícios diversos, chegam a um conhecimento perfeito das Escrituras e se gloriam de uma grande doutrina espiritual, ao passo que, ao contrário, imensa multidão de santos homens, de coração purificado de toda mancha de pecado, se contenta com uma fé bem simples e ignora os segredos duma ciência mais profunda?

Como, pois, fica essa tua sentença, que reserva aos corações puros a ciência espiritual?

XVI. Resposta, afirmando que os maus não podem ter a verdadeira ciência

Nésteros: Quem não pesa diligentemente todos os termos em que se exprimiu uma sentença, não examina corretamente o alcance de uma doutrina. Já antes dissemos que tais homens só tem certa perícia em discorrer, unida a uma feliz elocução, mas que são incapazes de entrar no âmago das Escrituras e no mistério dos seus sentidos espirituais.

A verdadeira ciência, só a possuem os verdadeiros adoradores de Deus, e não aquele povo ao qual se diz: — “Escuta, povo insensato, que não tens coração; que, tendo olhos, não vês, e ouvidos, não ouvis” (Jer 5,21). E ainda: “Porque rejeitaste a ciência, eu também te rejeito, para que não exerças as funções do meu sacerdócio” (Os 4,6).

Como está dito que em Cristo “estão escondidos todos os tesouros da sabedoria”, (Col 2,3), como, então se pode crer que obteve a verdadeira ciência, aquele que despreza ir ao encontro de Cristo, ou que, o tendo encontrado, o blasfema com boca sacrílega, ou desonra a fé católica por obras impuras? “O Espírito de Deus foge do fingido e não habita num corpo escravo do pecado” (Sab 1,5 e 4).

Não se pode, pois, chegar à ciência espiritual, senão seguindo a ordem que um dos profetas exprimiu de modo muito feliz: “Semeai para vós em vista da justiça, colhei a esperança da vida, acendei em vós a luz da ciência” (Os 10,12).

O primeiro cuidado é, pois, que semeemos para a justiça, isto é, que propaguemos pelas obras da justiça a nossa perfeição ascética. Depois, cumpre-nos colher a esperança da vida, isto é, recolher os frutos das virtudes espirituais, expulsando os vícios carnais. Desta maneira, finalmente, poderemos acender em nós a luz da ciência.

O Salmista também determina que essa ordem deve ser observada: “Bem-aventurados os que são imaculados em seu caminho, que andam na lei do Senhor. Bem-aventurados os que perscrutam os seus testemunhos” (Sl 118,1-2).

Ele não disse primeiro que são bem-aventurados os que perscrutam os testemunhos do Senhor, acrescentando depois que são bem-aventurados os que são imaculados em seu caminho. Primeiro, diz ele: Bem-aventurados os imaculados em seu caminho, mostrando claramente que ninguém pode chegar corretamente a perscrutar os testemunhos do Senhor,sem antes, andar imaculado na via do Cristo pela vida ascética. Portanto, aqueles a que te referiste, não podem possuir, dada a sua impureza, esta ciência, mas só possuem uma ciência “pseudonymon”, isto é, falsa, que não merece este nome. Desta, fala o bem-aventurado Apóstolo: “Ó Timóteo, guarda o depósito, evitando as novidades profanas em teus discursos e as oposições duma ciência de falso nome.

Em grego, e assim que esta dito: “tas antitheseis tes pseudonymou gnoseos”.

Quanto, pois, aqueles que parecem adquirir certa aparência de ciência, ou que, entregando-se com ardor a ler os volumes sagrados e a decorá-los de memória, não deixam, entretanto, os vícios da carne, os Provérbios tem esta expressão feliz: “Como anéis de ouro no focinho dum porco, assim é a beleza duma mulher de maus costumes” (Prov 11,22).

Que adianta, com efeito, adquirir as joias das palavras celestes e a beleza preciosíssima das Escrituras, se, agarrado a pensamentos e ações de lama, o homem a faz em pedaços, como se fosse uma terra totalmente imunda, ou a contamina nos redemoinhos enlameados das suas paixões impuras?

Aos que dela usam corretamente, a ciência costuma ser ornamento. Mas para pessoas daquela espécie, ela não só não pode ser ornamento, mas se cobre de imundícies pelo contágio de uma impureza que ela torna ainda maior.

“Da boca do pecador não provém belo louvor” (Sir 15,9). A ele esta dito pelo profeta: “Por que narras os meus preceitos e tens na boca a minha aliança?” (Sl 49,16). De tais almas, que não possuem de modo estável o temor do Senhor (do qual se diz que “o temor do Senhor é ciência e sabedoria”, Prov 15, 33) — e que se esforçam por adquirir, por uma meditação continua, o senso das Escrituras, recorda-se nos Provérbios, em palavras bem apropriadas: “Que serve para o insensato ter a riqueza? o homem sem inteligência não pode possuir a sabedoria” (Prov 17,16).

Esta verdadeira ciência espiritual está tão longe da erudição secular manchada pela impureza dos vícios carnais, que, às vezes, como sabemos, ela floresceu maravilhosamente até em homens desprovidos do dom da palavra e iletrados.

É o que se comprova, do modo mais claro, nos apóstolos e também em muitos santos varões, que não se abriam, como certas árvores, em frondosas mas estéreis folhagens, mas se curvavam ao peso de verdadeiros frutos da ciência espiritual. Deles é que está escrito nos Atos dos Apóstolos: “Vendo a constância de Pedro e de João, e verificando que eram homens iletrados e de baixa condição, ficaram cheios de espanto” (At 4,13).

Se, pois, te preocupas em chegar a respirar o seu perfume incorruptível, trabalha primeiro, de todas as tuas forças, para obter do Senhor a pureza da castidade. Pois ninguém possui a ciência espiritual, enquanto se deixa dominar pelas paixões carnais, e sobretudo pela fornicação. “No coração bom, repousa a sabedoria” (Prov 14,33); e ainda:”Quem teme o Senhor, achará a ciência com a justiça” (Sir 32,20).

Também o bem-aventurado Apóstolo nos ensina que é segundo a ordem que dissemos, que se chega à ciência espiritual. Querendo traçar a lista completa das suas virtudes, e, ao mesmo tempo, expor a ordem das mesmas, marcando a origem e a descendência de cada uma delas, ele acrescenta, depois de algumas palavras: “Em vigílias e em jejuns, na castidade, na ciência, na longanimidade, na bondade, no Espírito Santo, por uma caridade não fingida” (2 Cor 6,5-6) . Por essa maneira de ligar as virtudes uma a outra, ele nos quis ensinar com toda evidencia que se vai das vigílias e dos jejuns à castidade; da castidade à ciência; da ciência à longanimidade; da longanimidade à bondade; da bondade ao Espírito Santo; do Espírito Santo à recompensa duma caridade sincera.

Quando, portanto, chegares, através desta disciplina e nessa ordem, à ciência espiritual, terás também tu, fora de qualquer dúvida, uma doutrina, que não será estéril nem vã, mas cheia de vida e de frutos. Então, poderás lançar nos corações dos teus ouvintes a semente da palavra de salvação, que o orvalho abundante do Espírito Santo virá, em seguida, fecundar. Segundo a promessa do profeta, “a chuva será dada a tua semente, onde quer que semeares a terra; e o pão dos frutos da tua terra será muito abundante e substancial” (Is 30,23).