Borges Basilides

Jorge Luis Borges — DISCUSSÃO
Excertos da tradução em português de Claudio Fornari
UMA VINDICAÇÃO DO FALSO BASILIDES
Até 1905, eu sabia que as páginas oniscientes (de A a A11) do primeiro volume do Dicionário Enciclopédico hispano-americano de Montaner e Simón, incluíam um breve e alarmante desenho de uma espécie de rei, com afilada cabeça de galo, torso viril com os braços abertos que manejavam um escudo e um látego,e ainda uma cauda enroscada que lhe servia de trono. Até 1906 li esta obscura exposição de Quevedo: Estava o maldito Basilides heresiarca. Estava Nicolas antioquenho, Carpócrates e Cerintho e o infame Ebion. Logo veio Valentino, o que deu por princípio de tudo, o mar e o silêncio. Até 1923, busquei em Genebra não sei que livro heresiológico em alemão, e soube que o aziago desenho representava certo deus mesclado que havia sido horrivelmente venerado pelo próprio Basilides. Soube também que homens desesperados e admiráveis foram os gnósticos, e conheci suas especulações ardentes. Mais adiante pude especular os livros especiais de Mead (na versão alemã: Fragmente eines verschollenen Glaubens, 1902) e de Wolfang Schultz (Dokumente der Gnosis, 1910) e os artigos de Wilhelm Bousset na Enciclopédia Britânica. Hoje me propus a resumir e ilustrar uma de suas cosmogonias: a de Basilides heresiarca, precisamente. Sigo em um todo o informe de Irineu de Lião. Consta-me que muitos o invalidam, porém suspeito que esta desordenada revisão de sonhos defuntos pode admitir também a de um sonho que não sabemos se jamais habitou algum sonhador. A heresia basilidiana, por outro lado, é da mais simples configuração. Nasceu em Alexandria, dizem que aos cem anos da cruz, dizem que entre sírios e gregos. A teologia, então, era uma paixão popular.

No princípio da cosmogonia de Basilides há um Deus. Esta divindade carece majestosamente de nome, assim como de origem; daí sua aproximada denominação de pater innatus. Seu meio é o pleroma, ou a plenitude, o inconcebível museu dos arquétipos platônicos, das essências intangíveis, dos universais. É um Deus imutável, porém do seu repouso emanaram sete divindades subalternas que, condescendendo em agir, dotaram e presidiram um primeiro céu. Desta primeira coroa demiúrgica procedeu uma segunda, também com anjos, potestades e tronos, e estes fundaram um outro céu mais baixo, que era uma duplicação simétrica do inicial. Este segundo conclave se viu reproduzido em um terceiro, e este em um outro ainda mais inferior, e assim até 365. O senhor do céu do fundo é o da Escritura, e sua fração de divindade tende a zero; Ele e seus anjos fundaram este céu visível, amassaram a terra imaterial que estamos pisando e depois a repartiram entre eles. O razoável esquecimento apagou as fábulas precisas que esta cosmogonia atribuiu à origem do homem, porém o exemplo de outras imaginações coetâneas nos permite salvar essa omissão, ainda que de uma forma vaga e conjetural. No fragmento publicado por Hilgenfeld, a treva e a luz haviam coexistido sempre, ignorando-se, e quando finalmente se viram, a luz apenas olhou e deu as costas, porém a escuridão apaixonada se apoderou de seu reflexo ou lembrança, e esse foi o princípio do homem. No sistema análogo de Satornilo, o céu dá aos anjos trabalhadores uma visão momentânea, e o homem é fabricado à sua imagem, porém se arrasta pelo solo como uma víbora até que o Senhor, apiedado, lhe transmite uma centelha de seu poder. O ponto comum destas narrativas é o que importa: a nossa improvisação, temerária ou culpável, de uma divindade deficiente, com material ingrato.

Volto à história de Basilides. Removida pelos anjos onerosos do deus hebreu, a humanidade baixa mereceu a compaixão do Deus intemporal, que lhe destinou um redentor. Este precisou assumir um corpo ilusório, pois a carne degrada. Seu impassível fantasma foi publicamente crucificado, porém o Cristo essencial atravessou os céus superpostos e se restituiu ao pleroma. Atravessou-os incólume, pois conhecia o nome secreto de suas divindades. E os que sabem a verdade desta história, conclui a profissão de fé traduzida por Irineu, se saberão livres do poder dos príncipes que edificaram este mundo. Cada céu tem seu próprio nome, da mesma maneira que cada anjo, senhor e potestade desse céu. Aquele que conheça seus nomes incomparáveis atravessa-los-á invisível e seguro, igual ao redentor. E como o Filho não foi reconhecido por ninguém, tampouco o foi o gnóstico. E estes mistérios não deverão ser pronunciados e sim guardados em silêncio. Conhece a todos e que ninguém te conheça.

A cosmogonia numérica do princípio degenerou até o fim em magia numérica. 365 pavimentos do céu, à razão de sete potestades por céu, requerem a improvável retenção de 2555 amuletos orais: idioma que os anos reduziram o preciso nome do redentor, que é Caulacau, e o do imóvel Deus, que é Abraxas. A salvação, para esta desenganada heresia, é um esforço mnemotécnico dos mortos, assim como o tormento do salvador é uma ilusão de óptica — dois simulacros que misteriosamente condizem com a precária realidade do seu mundo.

Escarnecer da vã multiplicação de anjos nominais e dos refletidos céus simétricos dessa cosmogonia, não é de todo difícil. O princípio taxativo de Occam: Entia non sunt multiplicando praeter necessitatem, poderia ser-lhe aplicado — arrasando-a. Da minha parte creio anacrônico ou inútil esse rigor. A boa conversão desses pesados símbolos vacilantes é o que importa. Vejo neles duas intenções: a primeira é um lugar comum da crítica; a segunda — que não presumo erigir em descoberta -, não foi até hoje salientada. Começo pela mais ostensiva, que é a de resolver sem escândalo o problema do mal, mediante a hipotética inserção de uma série gradual de divindades entre o não menos hipotético Deus e a realidade. No sistema examinado, essas derivações de Deus decrescem e se desmoronam à medida que vão se distanciando até fundear nos abomináveis poderes que com material impróprio, garatujaram nos homens. No sistema de Valentino — que não deu por princípio de tudo o mar e o silêncio — uma deusa caída (Achamoth) tem como sombra dois filhos, que são o fundador do mundo e o diabo. A Simão, o Mago, imputam uma exacerbação dessa história: o haver resgatado Helena de Tróia, inicialmente a primeira filha de Deus e logo depois condenada pelos anjos a transmigrações dolorosas, de um lupanar de marinheiros em Tiro1). Os trinta e três anos humanos de Jesus Cristo e o seu anoitecer na cruz não constituíam suficiente expiação para os duros gnósticos.

Falta considerar o outro sentido dessas invenções escuras. A vertiginosa torre de céus da heresia basilidiana; a proliferação de seus anjos; a sombra planetária dos demiurgos transtornando a terra; a maquinação dos círculos inferiores contra o pleroma; e a densa população, se bem que inconcebível ou nominal, dessa vasta mitologia assiste também ao declínio deste mundo. Não o nosso mal, mas sim nossa central insignificância é pregada nestas invenções. Como nos prolongados ocasos na planície, o céu é apaixonado e monumental e a terra é pobre. Essa é a intenção justificadora da cosmogonia melodramática de Valentino, que enovela um infinito argumento de dois irmãos sobrenaturais que se reconhecem, de uma mulher decaída, de uma zombeteira intriga poderosa dos anjos maus e de um casamento final. Nesse melodrama ou folhetim, a criação do mundo é um mero aparte. Admirável ideia: o mundo imaginado como um processo essencialmente fútil, como um reflexo lateral e perdido de velhos episódios celestes. A criação como um feito casual.

O projeto foi heroico; o sentimento religioso ortodoxo e a teologia repudiam escandalizados essa possibilidade. A criação primeira, para eles, é o ato livre e necessário de Deus. O universo, segundo deixa entender Santo Agostinho, não começou no tempo, mas simultaneamente com ele — opinião que nega toda prioridade do Criador. Strauss dá por ilusória a hipótese de um momento inicial, pois este contaminaria de temporalidade não apenas os instantes ulteriores, mas também a eternidade “precedente”.

Durante os primeiros séculos da nossa era, os gnósticos disputaram com os cristãos. Foram aniquilados, mas nós podemos representar sua possível vitória. Se houvesse triunfado Alexandria em vez de Roma, as estrambóticas e confusas histórias que resumi aqui seriam coerentes, majestosas, cotidianas. Sentenças como a de Novalis: A vida é uma doença do espírito2) ou a frase desesperada de Rimbaud: A verdadeira vida está ausente; não estamos no mundo fulminariam nos livros canônicos. Especulações menosprezadas como a de Ritcher sobre a origem estelar da vida e sua casual disseminação neste planeta, conheceriam a promoção incondicional dos laboratórios piedosos. Em todo o caso, que melhor dom podemos esperar do que ser insignificantes? Que maior glória para um Deus do que a de ser absolvido do mundo?

1931


NOTAS
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  1. Helena, filha dolorosa de Deus. Essa divina filiação não esgota os contatos de sua lenda com a de Jesus Cristo. A este, lhe assinaram os de Basilides um corpo sem substância; da trágica rainha se pretendeu que somente o seu eidolon ou simulacro foi arrebatado a Troia. Um belo espectro nos redimiu; outro propagou-se em batalhas e em Homero. Para este gnosticismo de Helena, veja-se o Fedro] de Platão e o livro Adventures Among Books, de Andrew Lang, páginas 237-248. (N. do A. 

  2. A expressão — Leben ist eine Krartkheit des Geistes, ein leidenschaftliches Tun — deve sua divulgação a Carlyle, que a destacou em um famoso artigo publicado na Foreign Review, em 1829. E não representam coincidências momentâneas e sim um redescobrimento essencial das agonias e das luzes do gnosticismo, os Livros proféticos de William Blake. (N. do A.