Boehme Carta a Caspar Lindner

BoehmeEpístolas Teosóficas
Carta a Caspar Lindner
1. Que a fonte vertente aberta no coração de Jesus Cristo represente nosso conforto e que ela nos introduza em si, a fim de que vivamos em seu poder, a fim de que nos regozijemos nele, e que, em sua união, nos amemos nele, nos conheçamos e penetremos em uma vontade única! >

2. Honorável e muito sábio senhor, amigo amado no amor e na humanidade de Jesus Cristo, desejando-vos cordialmente em Nome de Deus nosso Emmanuel a beneficência do corpo e da alma, eu vos faço saber que recebi vossas cartas e que compreendi que não sois somente um pesquisador e um amante do Mistério divino, mas que estais em constante busca de todos os escritos que a ele se relacionem.

3. De minha parte, rejubilo-me grandemente pelo fato de Deus atrair e conduzir assim seus filhos, como está escrito: “Aqueles que possuem o Espírito de Deus são filhos de Deus”. Da mesma maneira que um galho de uma árvore se alegra com outro galho e lhe transmite sua seiva e sua pujança, assim ocorre com os filhos de Deus em Jesus Cristo, sua árvore. O que rejubila minha simples pessoa é que Deus nos atrai até ele pela sua vertente fonte, simples filhos que somos, em direção ao seio de nossa verdadeira mãe, de tal modo que aspiramos por ele como uma criança deseja sua mãe.

4. Porque, meu caro senhor e irmão no amor de Cristo, sinto que está sedento da fonte aberta de Cristo, que vos preocupais com o usufruto de vossos irmãos e que, como um ramo na árvore, desejais vos saciar neles. É um prazer para mim comunicar, pelo conhecimento que possuo, concedido por Deus, minha seiva e meu espírito aos meus irmãos e aos membros de nossa família como a outros galhos comuns na árvore de Jesus Cristo, rejubi-lando-me totalmente por eles, em sua seiva, em sua pujança, em seu espírito. Eis, realmente, para a minha alma um manjar agradável, que vejo verdejar no paraíso de Deus os galhos comuns e os membros de minha família.

5. Não vos ocultarei o caminho simples dos filhos, sobre o qual caminho em Cristo: pois, quando falo de mim, falo apenas de um filho que não sabe e não compreende nada, que apenas aprendeu o que o Senhor desejava que me fosse dado saber, à medida que ele se revelava em mim.

6. Jamais, de fato, nutri o desejo de conhecer algo a respeito do Mistério divino; nunca compreendi como procurá-lo e encontrá-lo. Minha ignorância era a mesma dos leigos, em sua simplicidade. Procurei o coração do Cristo a fim de me esconder da colérica ira de Deus e dos ataques do diabo, e com devoção roguei a Deus que me concedesse Seu Espírito Santo e Sua graça para que me abençoasse nele e me conduzisse, para que me afastasse do que me desviava dele, a fim de que me abandonasse inteiramente a ele, a fim de que eu não vivesse segundo a minha vontade, mas segundo a Sua, a fim de que ele fosse meu único guia, e a fim de que eu pudesse ser sua criança em seu filho Jesus Cristo.

7. Nessa procura e nesse desejo que muito me animavam, e durante os quais fui tomado de violentos ataques — preferia entretanto renunciar à vida a me desligar e abandonar —, a porta estava aberta, diante de mim, ainda que em minutos vi e soube mais do que se tivesse frequentado a universidade durante vários anos. Isso muito me espantou, não sabia o que me acontecia, devotando, então, meu coração à louvação a Deus.

8. Na verdade, vi e conheci o ser de todos os seres, o fundo e o sem fundo, o nascimento da santa trindade, a origem e o estado original desse mundo e de todas as criaturas pela Sabedoria Divina. Conheci e vi em mim mesmo os três mundos: 1) o mundo divino, angélico e paradisíaco; 2) o mundo tenebroso, o estado original da natureza, fundamento do fogo; 3) e o mundo exterior e visível, que é uma criatura e uma extrageração, um ser expresso, originário dos dois mundos espirituais interiores. Vi e conheci todo o ser no mal e no bem, como o um se originou do outro e que era a matriz da poderosa geratriz, a ponto de não somente participar da admiração, mas igualmente da alegria.

9. Meu ser interior sentiu-se tão tocado que concebi o projeto de consigná-lo em um memorial. Apesar das grandes dificuldades que experimentou em mim o homem exterior para o colher e para o colocar por escrito, eu deveria começar imediatamente a trabalhar nesse tão grande Mistério, como uma criança que vai à escola. Visualizava-o no interior, como em um abismo. Depois eu o penetrei como se penetra um caos que contém tudo. Mas, para mim, era impossível desfazer o emaranhado.

10. No entanto, de tempos em tempos, aquilo se abria em mim tal como em uma planta. Durante 12 anos, foi necessário que vivesse com aquilo, carregando-o comigo como um bebê, sentindo em mim a violência da compulsão, até que eu pudesse exteriorizá-lo e consigná-lo por escrito.

11. Certamente, mais tarde, o sol me iluminou durante algum tempo. Mas não o fez com perseverança. Cada vez que se escondeu, apenas realizei meu próprio trabalho: isso a fim de que o homem reconhecesse que o saber não lhe pertence, mas que é de Deus e que Deus sabe o que o homem deseja e de que forma o deseja.

12. Pensei conservar meus escritos e não os mostrar a ninguém. Mas, por uma ordem do Altíssimo, ocorre que os confidenciei a alguns. Sem que soubesse, a obra se revelou, meu primeiro livro (Aurora) me foi arrebatado, e, uma vez que estavam expostas realidades demasiado maravilhosas que o ser humano não podia acatar, logo eu enfrentaria muitos tormentos por parte dos sábios que se apoiam no entendimento.

J. Boehme, Carta a Caspar Lindner, Epistolae theosophicae (1618-1624; 1a ed. 1730), trad. do alemão: B. Gorceix, Les épitres, Éd. du Rocher, Monaco, 1980, p. 194 sq.