1 No terceiro dia, há uma boda em Qana de Galil.
A mãe de Iéshoua está ali.
2 Iéshoua‘ também é convidado para a boda com seus adeptos.
3 Acabou-se o vinho.
A mãe de Iéshoua lhe diz:
«Eles não têm mais vinho.»
4 Iéshoua‘ lhe diz:
«O que há entre mim e ti, mulher?
Minha hora ainda não é chegada.»
5 Sua mãe diz aos servos:
«Aquilo que ele vos disser, fazei-o.»
6 Há ali jarras de pedras, seis,
prontas para a purificação dos Iehoudíms; cada uma contém duas ou três medidas.
7 Iéshoua‘ lhes diz: «Enchei de água as jarras.» Eles as enchem até a borda.
8 Ele diz: «Tirai agora,
e levai-ο ao mestre da festa.»
E eles o levam.
9 O mestre prova a água transformada em vinho e não sabe de onde vem. Mas os servos sabem, eles que haviam tirado água.
O mestre da festa chama o esposo
10 e lhe diz: «Todos servem primeiro o bom vinho, depois, quando já estão alegres, o pior.
Tu guardaste o melhor vinho até agora.»
11 Isto, ele, Iéshoua, fez, no princípio dos sinais, em Qana de Galil.
Ele manifesta sua glória e seus adeptos aderem a ele. [Chouraqui]
Juan Matos e Juan Barreto
A água-vinho da purificação. O tema da água aparece pela segunda vez nas núpcias de Caná (Jo 2,1-11). As talhas de pedra, figura da Lei (tábuas de pedra), destinadas a conter água para a purificação, estão vazias (Jo 2,7: Enchei as talhas de água)-, a antiga Lei não pode purificar. Uma vez que João caracterizava sua missão como a da água e a de Jesus como a do Espírito (veja-se antes I), é significativo que no começo de sua atividade Jesus transforme a água em vinho. Caracteriza assim sua obra como a passagem da aliança antiga para a nova.
Fazendo encher as talhas de água, Jesus significa sua vontade de purificar (restabelecer a relação com Deus), o que a antiga instituição não conseguira fazer; ao converter em vinho somente a amostra de água que oferece o mestre-sala (Jo 2,9), explica que sua purificação é independente da Lei da antiga aliança (a água foi tirada das talhas). Sua purificação não se fará a partir de fora (água que lava), e sim a partir do interior do homem (vinho que se bebe, o Espírito). A purificação, associada sempre à ideia de aflição ritual (liturgia penitencial), passa para o campo da alegria e da festa, dada pelo vinho do Espírito nas novas núpcias-aliança.
Joaquim Carreira da Neves: AS BODAS DE CANÁ
Antonio Orbe:
Roberto Pla: Evangelho de Tomé – Logion 28
Segundo o relato evangélico, é urgido Jesus pela mãe, uma vez esgotado o vinho natural, a incorporar o vinho messiânico procedente de sua vida espiritual. Não há dúvida de que o vinho de que aqui se fala é o vinho messiânico, pois não há que supor que o evangelista incorre no gesto pueril de converter a Jesus em um subministrador milagroso de vinho comum para a diversão profana dos assistentes a um banquete. Mas ocorre que a hora do enlace místico é estritamente, a hora da primeira manifestação interior do Filho oculto, a hora “do pequenino de sete dias a quem se interroga” (Evangelho de Tomé – Logion 4) para iniciar paulatinamente a conversão da água dos conteúdos psíquicos batismais — em vinho do espírito, para que o “homem novo em Cristo” cresça na consciência até alcançar a unidade no seio da videira verdadeira.
As bodas messiânicas assinalam a hora de começar a ganhar, não sem pudor, o pão da vida que o espírito deixa chover mansamente sobre a alma enamorada de Deus. Cada descida de alimento espiritual é sempre crescimento de Cristo na alma ou, melhor ainda, desvanecimento da alma no espírito; mas tal consumação não é obra de um dia senão da vida inteira. Por isso aceita Jesus iniciar a “conversão” (metanoia), mas adverte “à mãe” que não é chegado ainda o momento de “embriagar-se” com o vinho messiânico. O que cabe é começar a conversão para ter entretanto algum vinho que servir no cálice. Como aviso das fadigas que aguardam a noiva mística — a alma — invoca Jesus veladamente a velha maldição genesíaca trazida pela inimizade entre a linhagem da serpente (conhecimento) e a linhagem reflexiva ou ação feminina do pensamento sobre si mesmo.
Jesus diz: “Que tenho eu contigo, mulher?” Com isto parece voltar seu olhar ao segundo capítulo do Gênesis, onde ao referir-se YHWH Deus à mulher formada por ele, diz: “Esta será chamada mulher” (Gen 2,23). É importante recordar que a “mulher” foi chamada pelo homem “Eva”, com o que o ser humano, Adão, manifesta não somente reconhecê-la como “mulher” senão também como “mãe”, pois segundo diz o texto: “Chamou a sua mulher Eva por ser ela a mãe de todos os viventes” (Gen 3, 20). Por isso, quando o evangelista anota que sua mãe o disse a Jesus: “Não tem vinho”, o aviso não vem de Maria, a mãe manifesta do soma de Jesus, senão de Eva, a “mãe dos viventes”, enquanto “mãe” universal da vida psíquica, quer dizer, do pensamento reflexivo com tudo quanto tem este de contrapartida psíquica feminina e que se institui, segundo foi dito, como uma só carne na psique, pois o pensamento, varão e “varoa”, constituem o ser humano psíquico completo, a psique inteira, quer dizer, “Adão alma vivente”.
Seis talhas de pedra vazias há apartadas na sala das bodas — figura do que hoje chamamos a mente — e nelas se pode armazenar, como se fossem depósitos da memória, todo o material reunido pela “alma vivificada”, preparado para entrar no processo de purificação. O evangelista explica que, com efeito, as talhas estavam destinadas às purificações e sua capacidade de volume, dois ou três medidas cada uma, recorda as três medidas necessárias para que toda farinha fermente endereçada para o Reino de Deus, segundo diz a parábola da levedura (vide Levedura), e cujo valor espiritual foi descrito pelos sinópticos ao explicar a parábola do semeador.
Com isto tem início a obra milagrosa de Jesus neste episódio. Sua significação é a mesma que tem o batismo nas águas do Jordão que os sinópticos relatam. As talhas, cheias de água “até em cima”, quer dizer, até a medida completa, até alcançar a epignosis, o conhecimento perfeito, creditam que a alma (= água = ruah), “saciada” de conteúdos psíquicos, submersa neles, sofre a fome e a sede de justiça próprias para a bem-aventurança (vide Bem-aventurados. É nestas águas psíquicas batismais onde se há de produzir a conversão (metanoia) pela qual, progressivamente, todos os conteúdos psíquicos suscetíveis de ser salvos pela purificação se resolverão em ser espírito (vinho — nesamah) para ser logo exalado antes de ascender ao Pai.
No relato joanico, a ação do Pai vem figurada pelo mestre-sala, Aquele que preside às bodas místicas, Aquele que aprova e revela a existência do vinho novo. Em grego mestre-sala, architriclinus, o que preside um banquete; neste caso, o banquete messiânico no qual se celebram as bodas do esposo e da esposa — espírito, alma — celestiais.
Frithjof Schuon: O ESOTERISMO COMO PRINCÍPIO E COMO VIA
Evidentemente, não podia haver, na intenção de Cristo, a preocupação única de não ver profanado um sacramento natural e primordial. Havia, também, e até mesmo acima de tudo, o oferecimento de um meio espiritual congênito para uma perspectiva ascética, pois a castidade é necessariamente o gérmen de um caminho, levando-se em consideração justamente a ambiguidade das coisas sexuais. Em Caná, Cristo consagrou ou abençoou o casamento, sem que se possa afirmar que Ele o fez segundo o meio pauliniano ou agostiniano. Transformou a água em vinho, o que é de um simbolismo eloquente e se refere com muito maior verossimilhança à possibilidade da união simultaneamente carnal e espiritual do que ao oportunismo moral e social dos teólogos. Caso se tratasse de uma união apenas carnal, ela não seria mais humana, justamente.1
Maurice Nicoll: BODAS DE CANÁ
Quando a Igreja ensina que Maria foi “concebida sem pecado”, refere-se ao fato de sua alma ter sido criada sem a mácula do pecado original. Mas muitos fiéis não-instruídos creem que esse atributo se refere à maneira extraordinária da sua concepção, realizada sem a união carnal dos seus pais — segundo uma tradição — ou, pelo menos, sem desejo nem prazer na união, portanto sem “concupiscência”. Se essa interpretação não é teológica, sua existência não deixa de ser significativa, pois tal sentimento é típico da perspectiva cristã. ↩