Discípulos de Jesus — DISCÍPULO QUE JESUS AMAVA Manuel João Ramos: Excertos de "Ensaios de Mitologia Cristã"
Quem é o «discípulo que Jesus amava», ao qual o Evangelho segundo João se refere? A tradição da exegese bíblica identifica-o correntemente com o autor putativo deste evangelho — João, filho de Zebedeu, irmão de Tiago. Este «discípulo amado» é mencionado em duas ocasiões. Durante o episódio da «última ceia», reclina-se sobre o peito de Jesus e pergunta-lhe quem o irá trair (João, XIII, 25); depois da ressurreição, e a seguir ao episódio da incredulidade de Tomé, encontra-se num barco a pescar com outros discípulos e reconhece Jesus na praia; dele diz Jesus a Pedro: «Se eu quero que ele permaneça até que eu venha (no segundo advento), que te importa? Quanto a ti, segue-me (na morte)» (XXI, 22). O texto refere em seguida: «Divulgou-se, então, entre os irmãos, a notícia de que aquele discípulo não morreria» (XXI, 23). A grande proximidade deste discípulo em relação a Jesus, a capacidade de, contrastando com Tomé, reconhecer Jesus renascido, e a sugestão de uma imortalidade tendencial (assimilável à de Henoch e de Elias), servem de base à sua identificação com o autor do «evangelho do amor», a quem é atribuída uma longevidade invulgar (Chadwick, 1991:586a-b)[].
Se João é, na tradição cristã, conotado com uma vida longa[], a única evidência textual de uma identificação clara deste com o «discípulo que Jesus amava» são as palavras finais, acrescentadas por um copista, que se lhe refere na terceira pessoa: «Este é o discípulo que dá testemunho dessas coisas e foi quem as escreveu; e sabemos que o seu testemunho é verdadeiro» (XXI, 24). Por sua vez, o Evangelho segundo Tomé é explícito: é o apóstolo Judas Tomé, e não João, o discípulo favorito de Jesus, aquele que detém um conhecimento secreto sobre Deus e o seu verdadeiro nome oculto (logion 13). Nos evangelhos canônicos, João, com Tiago e Pedro, testemunha a transfiguração de Jesus, na montanha. Mas os Atos de Tomé afirmam claramente que o «gémeo de Jesus» (Judas Tomé) a presenciou (§. 47, 143). O próprio texto de João, ao contrário dos outros evangelhos canônicos, lhe dá, senão protagonismo, pelo menos uma óbvia individualização, a propósito da temática da morte e ressurreição: perante a informação de que Lázaro tinha morrido, Tomé, «o chamado Dídimo», diz: «Vamos nós também, para morrermos com ele» (João, XI, 16) — frase reportável ao âmbito de uma interpretação metafórica do episódio da ressurreição do jovem como um ritual iniciático. No fim da última ceia, Tomé interroga Jesus sobre o «caminho» para o Reino e este responde-lhe: «Eu sou o caminho, a verdade e a vida» (XIV, 5-6). Finalmente, no episódio que identifica o «discípulo incrédulo», João informa que Tomé toca os estigmas de Jesus renascido e, permanecendo a sua mão incólume (ao contrário do que acontece à Salomé do Proto-evangelho de Tiago), crê na sua consubstanciação (João, XX, 24-29; cfr. figura 58).
É interessante notar que, diferentemente de João, os evangelhos sinópticos, que não individualizam Tomé em nenhum dos episódios narrativos, estendem ao conjunto dos discípulos, indiscriminadamente, a atitude de inicial incredulidade perante a ressurreição consubstancial de Jesus[]. João que, através do cruzamento de testemunhos que sistematiza a narrativa, sugere uma identificação mais que pontual entre Jesus e o Diabo, coloca a questão da humanidade do Cristo segundo vias argumentativas completamente independentes em relação aos outros textos bíblicos. É no contexto retórico associado ao tema da (re) consubstanciação das duas naturezas que é expressa a distinção estabelecida entre a atitude de Tomé e a dos outros discípulos perante a ressurreição de Jesus.