Sobre os Anjos
Um anjo é uma realidade espiritual com seu próprio conteúdo, suas qualidades e seu caráter singular. O que diferencia um anjo de outro não é a qualidade física da separação espacial, mas a diferença de nível — um estando acima ou abaixo de outro — em relação à causalidade fundamental em termos de alguma diferença na essência. Ora, como já dissemos, os anjos são seres no mundo que é a esfera de ação da emoção e do sentimento; e como este é o caso, a qualidade substancial de um anjo pode ser um impulso ou uma inclinação — digamos, uma inclinação na direção do amor ou um ataque de medo, ou pena, ou algo similar. Para expressar uma totalidade maior do ser, algo mais abrangente, podemos referir-nos a “um campo de anjos”. No campo geral do amor, por exemplo, há muitas subdivisões, matizes e graduações virtualmente inumeráveis de sentimentos de ternura. Não há dois amores iguais em emoção, assim como não há duas ideias iguais. Portanto, toda inclinação ou impulso geral e inclusivo é um campo inteiro, talvez até uma mansão, e não é consistentemente o mesmo em todos os níveis, enquanto que nos seres humanos as emoções mudam e variam segundo as pessoas ou de acordo com as circunstâncias de tempo e lugar, um anjo é totalmente a manifestação de uma essência emocional única. Portanto, a essência de um anjo é definida pelos limites de uma determinada emoção, em termos de si mesma, como a personalidade e a introversão definem a personalidade de cada pessoa em nosso mundo. No entanto, um anjo não é apenas um fragmento da existência, não fazendo nada mais que manifestar uma emoção; é um ser completo e íntegro, consciente de si mesmo e do que o rodeia, e capaz de agir e criar e fazer coisas dentro da estrutura do Mundo da Formação. A natureza do anjo é ser, até um certo grau, como significa o seu nome em hebraico, um mensageiro, constituir um contacto permanente entre o nosso Mundo da Ação e os mundos superiores. O anjo é aquele que efetua transferências da abundância vital entre os mundos. As missões de um anjo vão em duas direções: pode servir de emissário de D-us na direção descendente, para outros anjos e para mundos e criaturas abaixo do Mundo da Formação; e também pode servir como aquele que leva as coisas de baixo para cima, do nosso mundo para os mundos superiores.
A real diferença entre o ser humano e o anjo não é o fato do homem ter um corpo, porque a comparação essencial é entre a alma humana e o anjo. A alma do homem é muito complexa, e inclui todo um mundo de diversos elementos existenciais de todos os tipos, enquanto que o anjo é um ser de essência singular, e portanto, num certo sentido, unidimensional. Outrossim, o homem — devido aos muitos aspectos que encerra, sua capacidade de conter contradições, e seu dom de um poder interior da alma, essa faísca divina que o torna homem — tem a capacidade de distinguir entre uma coisa e outra, especialmente entre o bem e o mal. É esta capacidade que lhe possibilita subir até grandes alturas, e que também cria a possibilidade do seu fracasso e retrocesso, sendo que nenhuma dessas duas coisas é válida para o anjo. Do ponto de vista da sua essência, o anjo é eternamente o mesmo; é estático, uma existência imutável, seja ela temporária ou eterna, fixada dentro dos limites rígidos da qualidade dada no exato momento da sua criação.
Entre os muitos milhares de anjos a serem achados nos diversos mundos, estão aqueles que existem desde o começo dos tempos, pois são uma parte inalterada do Ser Eterno e da ordem fixa do universo. Num certo sentido, esses anjos constituem os canais da abundância através dos quais a divina graça sobe e desce nos mundos.
Mas também há anjos que estão sendo constantemente recriados, em todos os mundos, e especialmente no Mundo da Ação onde os pensamentos, os atos e as experiências dão origem a anjos de tipos diferentes. Toda mitzvah que um homem faz não é apenas um ato de transformação no mundo material; também é um ato espiritual, sagrado em si mesmo. E este aspecto da espiritualidade concentrada e santidade na mitzvah é o componente principal daquilo que se torna um anjo. Em outras palavras, a emoção, a intenção, a santidade essencial do ato combinam-se para tornarem-se a essência da mitzvah, como uma existência em si mesma, como algo que tem realidade objetiva. E esta existência separada da mitzvah, por ser singular e sagrada, cria o anjo, uma nova realidade espiritual que pertence ao Mundo da Formação. Assim é que o ato de fazer uma mitzvah se estende além do seu efeito no mundo material e, pelo poder da santidade espiritual que encerra — santidade em comunhão direta com todos os mundos superiores — causa uma transformação primária e significativa.
Mais precisamente, a pessoa que executa uma mitzvah, que reza ou dirige a sua mente para o Divino, ao fazê-lo cria um anjo, que é uma espécie de tentativa do homem de atingir os mundos superiores. Esse anjo, no entanto, relacionado em sua essência como o homem que o criou, ainda vive, totalmente, numa dimensão diferente do ser, isto é, no Mundo da Formação. E é neste Mundo da Formação que a mitzvah adquire substância. Este é o processo pelo qual a mensagem específica ou oferenda a D-us, que está intrínseca na mitzvah, adquire substância, sobe e introduz mudanças no sistema dos mundos superiores — especialmente no Mundo da Formação. Daqui, por sua vez, elas influenciam os mundos que estão acima. Portanto, vemos que um ato supremo é efetuado quando o que é feito embaixo se remove de um lugar, tempo e pessoa física, e se torna um anjo.
Pelo contrário, às vezes um anjo é enviado para baixo, de um mundo superior, para um mundo inferior. Porque o que chamamos de missão de anjo pode manifestar-se de várias formas diferentes. O anjo não pode revelar sua verdadeira natureza ao homem, cujo ser, sentidos, e instrumentos de percepção pertencem somente ao Mundo da Ação: no Mundo da Ação, não existem maneiras de captar o anjo. Ele continua pertencendo a uma dimensão diferente, apesar de ser apreendido de uma ou de outra maneira. Isto pode ser comparado àquelas frequências de um campo eletromagnético que estão além da gama limitada comumente percebida pelos nossos sentidos. Sabemos que a visão humana assimila somente um pequeno fragmento do espectro; no que diz respeito aos nossos sentidos, o resto dele não existe. O que é habitualmente invisível é “visto” somente através de instrumentos adequados de transmutação, ou interpretação quando, na linguagem da Cabala, estão vestidos com as roupas ou com os recipientes que possibilitam que nós os apreendamos — como, por exemplo, ondas de rádio ou televisão têm de ser transmitidas através de meios adequados, para serem reveladas aos nossos sentidos. Do mesmo modo, existem aspectos da realidade do mundo espiritual dos quais estamos somente vagamente conscientes. Até os animais podem às vezes ser sensíveis, até um grau limitado, à presença dessa essência espiritual. O burro de Balaam, por exemplo, que “viu” um anjo, logicamente não o viu realmente: provavelmente, o animal teve uma vaga sensação de ser confrontado ou ameaçado por algo.
Os anjos revelaram-se aos seres humanos de uma das duas maneiras seguintes: uma é através da visão do profeta, o vidente, ou o homem santo — ou seja, uma experiência de uma pessoa no nível mais alto; a outra é através de um ato isolado de apreensão por uma pessoa comum repentinamente privilegiada para receber uma revelação de coisas dos níveis superiores. E mesmo assim, quando essa pessoa ou profeta experimenta de alguma maneira a realidade de um anjo, sua percepção, limitada pelos seus sentidos, permanece ligada a estruturas materiais, e sua linguagem, inevitavelmente, mostra uma tendência para expressões de formas físicas reais ou imaginadas. Então, quando o profeta tenta descrever ou explicar aos outros sua experiência de ter visto um anjo, a descrição beira o misterioso e o fantástico. Termos como “criatura alada do céu”, ou “olhos da carruagem suprema” podem ser somente uma representação pálida e inadequada da experiência, porque esta experiência pertence a outro campo de ação, com outro sistema de formação de imagens. Necessariamente, a descrição terá de ser antropomórfica. Ou quando, como sabemos, o anjo a quem o profeta descreve como tendo a cara de um boi não tem nenhuma cara em absoluto — e certamente não a de um boi — sua essência interior, procurando esclarecimento e reflexão dentro da realidade material, poderá expressar-se de um modo que mostra certa similaridade entre a cara de um anjo e a cara de um boi, como a expressão de uma qualidade espiritual conhecida.
Portanto, todas as visões articuladas da profecia não são nada mais que modos de representar uma realidade espiritual abstrata e informe, no vocabulário da linguagem humana; apesar de que, com toda certeza, também possa haver uma revelação de um anjo de maneira bastante comum, vestido com algum aspecto familiar e manifestada como um fenômeno “normal” da natureza. A dificuldade é que aquele que vê um anjo desta maneira nem sempre sabe que é uma aparição, que a coluna de fogo ou a imagem de um homem não pertence totalmente ao campo de ação da causa e efeito natural. Ao mesmo tempo, o anjo — ou seja, a força enviada de um mundo superior — faz a sua aparição e até certa medida age no mundo material, seja estando totalmente sujeito às leis do nosso mundo, ou funcionando numa espécie de vazio entre os mundos nos quais a natureza física não é mais que um tipo de vestimenta para alguma substância superior. Na Bíblia, Manoá, o pai de Sansão, vê o anjo na imagem de um profeta; porém, ele sente de alguma maneira inexplicável que não é um homem que ele está vendo, que está testemunhando um fenômeno de ordem diferente. Somente quando o anjo muda de forma completamente e se torna uma coluna de fogo, Manoá reconhece que este ser, esta maravilha que viu e com a qual conversou, não era um homem, não era um profeta, mas um ser de outra dimensão da realidade, quer dizer, um anjo.
A criação de um anjo no nosso mundo, e a imediata relegação deste anjo para outro mundo não é, em si mesma, um fenômeno sobrenatural, em absoluto; é uma parte de uma esfera de ação da experiência, uma parte integrante da vida, que pode até parecer ordinária e lugar-comum, devido à sua origem tradicional no sistema das mitzvah, ou a ordem da santidade. Quando estamos no ato de criar o anjo, não temos percepção do anjo que está sendo criado, e este ato parece ser uma parte da estrutura total do mundo prático material onde vivemos.
De modo similar, o anjo que nos é enviado de outro mundo nem sempre tem um valor ou impacto além das leis normais da natureza física. De fato, costuma acontecer que o anjo se revele exatamente na natureza, no mundo ordinário de lugar-comum da causalidade, e somente uma introspecção ou adivinhação profética pode mostrar quando, e em que medida, ele é obra de forças superiores. Pois o homem, exatamente pela sua natureza, está ligado ao sistema dos mundos superiores, apesar de — habitualmente — este sistema não lhe ser revelado e conhecido. Em consequência, o sistema dos mundos superiores lhe parece ser natural, como o total de sua existência de dois lados, incluindo a matéria e o espírito, lhe parece evidente. O homem não se pergunta nada sobre essas passagens que faz o tempo todo no Mundo da Ação, da esfera de ação da existência material, para a da existência espiritual. Mais ainda, o resto dos outros mundos que também penetram nosso mundo pode parecer-nos como parte de algo bastante natural. Pode-se dizer que as realidades do anjo e do Mundo da Formação são parte de um sistema de ser “natural” que é tão regido pela lei, como aquele aspecto da existência que somos capazes de observar diretamente. Portanto, nem a existência do anjo, nem a sua “missão”, levando-o de mundo em mundo, precisam irromper na realidade da natureza, no sentido mais amplo da palavra.
O campo de ação dos anjos, o Mundo da Formação, é um sistema geral de essências não físicas, a maioria delas bastante simples e consistentes em seu ser. Cada anjo tem um caráter bem definido, que se manifesta pela maneira como funciona em nosso mundo. Por isso, dizemos que um anjo pode efetuar somente uma missão, porque a essência de um anjo está além dos aspectos múltiplos do homem. A essência particular de um anjo pode ser determinada em termos de coisas diferentes e formas separadas, mas ela permanece uma coisa singular em si mesma, como uma simples força da natureza. Porque apesar do anjo ser um ser que possui uma consciência divina, sua essência e função específicas não são alteradas por ela, assim como as forças físicas no mundo são específicas e únicas em seu modo de funcionamento, e não estão constantemente mudando as suas essências. Por conseguinte, assim como há anjos sagrados, fabricados e criados pelo sistema sagrado, também há anjos destrutivos, chamados “diabos” ou “demônios”, que são as emanações da relação do homem com esses aspectos da realidade que são o oposto da santidade. Aqui, também, as ações do homem e seus modos de existência, em todas as suas formas, criam anjos, mas anjos de outro tipo, de outro nível e de uma realidade diferente. Esses são anjos hostis que podem formar parte de um mundo inferior, ou até mesmo de um mundo superior, mais espiritual — este último, porque apesar de não pertencerem ao reino da santidade, como em todos os mundos e sistemas do ser, há uma interpenetração e influência mútua entre o sagrado e o não sagrado.