Ambrósio de Milão — Tratado sobre o Evangelho de São Lucas
S. Ambrósio — Lc 12, 49-50. — Porque Jesus veio
49 “É um fogo que vim trazer à terra, e como quisera que já tivera aceso! 50 É um batismo que tenho de receber, e quanto me pesa até que seja consumado” (Lc 12, 49-50).
Obras de San Ambrosio, I, Tratado sobre el Evangelio de San Lucas, Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), Madrid, 1966, 655 p., edición bilingüe preparada por el padre Manuel Garrido Bonaño, O.S.B.
Contribuição e tradução de Antonio Carneiro das páginas 411, 412 e 413.
131. “ Vim para por fogo na terra, e que que hei de querer senão que arda ? Tenho que receber um batismo, e como me angustio até que isso se cumpra ! ” Nos parágrafos anteriores nos expressou seu desejo de nos ver vigilantes, esperando em todo momento a vinda do Senhor da salvação, para que ninguém, enquanto abandona e esquece com negligência seu trabalho, adiando de um dia para outro, quando chegue, pela própria morte, o juízo futuro, perca a recompensa de seu esforço. Ainda que a apresentação geral do preceito vá dirigida para todos, no entanto, o teor da comparação seguinte parece estar dirigida aos dispensadores, quer dizer, aos sacerdotes (bispos), pelo qual devem saber que, ao fim da vida, far-se-ão credores de um grande castigo se, preocupados pelo bem-estar deste mundo, governam com negligência a casa do Senhor e o povo encomendado à eles.
132. Mas com o proveito daqueles que são afastados do erro pelo temor do suplício, é mínimo, e escasso também o cúmulo de seus méritos (porque certamente é de muito maior valor a caridade e o amor), o Senhor aguça nosso interesse para merecer sua graça e nos inflama no desejo de possuir a Deus, dizendo-nos: “ Vim para por fogo na terra” , mas não um fogo que destrói os bens, mas sim esse que faz germinar a boa vontade e enriquece os vasos de ouro da casa de Deus destruindo o feno e a palha (1Cor 3,12ss); esse fogo divino que murcha os desejos terrenos, elaborados pelos prazeres mundanos, os quais devem perecer como obra da carne; esse fogo, enfim, que era o que ardia com força dentro dos ossos dos profetas, como disse esse grande santo Jeremias : “ O que arde dentro de meus ossos é como um fogo abrasador ” (Jr 20,9). Com efeito, o fogo do que está escrito: “ Arderá um fogo diante de Ele” (Sl 96,3) é o fogo do Senhor. E ainda o próprio Senhor é esse fogo, como Ele mesmo disse: “ Eu sou o fogo que queima e não consome” (Ex 3,22 ; cf. 24,17; Dt 4,24: Hb 12,29); porque o fogo do Senhor é uma luz eterna, e com este fogo é com o que se ascendem as lamparinas das que se disse mais acima: “ Estejam vossos lombos cingidos e acesas vossas lamparinas” . E posto que o dia desta vida é como uma noite, é necessário uma luz. Também Ammaus1 e Cleofás foram testemunhos deste fogo que o Senhor lhes havia infundido, quando disseram: “ Não ardiam nossos corações, enquanto no caminho nos explicava as escrituras ? ” (Lc 24,32). Eles aprenderam, com efeito, com clareza qual é a ação própria deste fogo, que ilumina o mais íntimo do coração. Por isso, talvez, o Senhor virá ao fim com o sinal do fogo (cf. Is 66,15-16), com objetivo de destruir, no momento da ressurreição, todos os vícios, encher os desejos de cada qual com sua presença e lançar luz sobre os métodos e os mistérios.
133. Tanta é a condescendência do Senhor, que testemunham ter em seu coração um grande desejo de infundir-nos a devoção, de consumar em nós a perfeição e de realizar, em nosso favor, sua paixão. Este Senhor, que nada tinha que devesse estar agarrado à dor, quis angustiar-se por nossos sofrimentos, e no momento da morte se deixou levar por uma tristeza, que não era causada pelo medo de sua própria morte, mas sim motivada pela demora de nossa redenção; e por isso está escrito: “ E que angustiado estou até que se cumpra ! ” O qual nos explica claramente que Ele, que se angustia atá que se cumpra o que deseja, está seguro de que se vai realizar. Mas também disse em outro lugar: “ Minha alma está triste até a morte”2,38). O Senhor não está triste pela morte, mas sim até a morte, porque o que lhe angustia não é o temor dela, mas sim o sentimento de sua condição corporal. Mas Ele que se fez carne, deveu passar também por tudo o que era próprio da carne, como o ter fome, sede, angústia, tristeza, ainda que a divindade não conheça alteração por estas impressões. Ao mesmo tempo nos mostrou que, na luta contra a dor, a morte corporal é uma liberação do sofrimento e não um paroxismo da dor.