A Bíblia hebraica começa com a história da criação do mundo por Deus, e dá o nome de Adão ao primeiro homem, porque foi tirado da terra. Adão é um nome genérico. Vale para todos, homens e mulheres (Gn 2,4-25). – Do hebraico “adama” = terra. [Schwikart]
Quaisquer que sejam as tradições e exegeses — que muitos livros não bastariam para resumir, Adão simboliza o primeiro homem e a Imagem de Deus. No caso de Adão, primeiro significa muito mais do que uma prioridade no tempo. Adão é o primeiro na ordem da natureza, é o ponto culminante da criação terrestre, o ser supremo em humanidade. Portanto, neste caso, primeiro não significa de modo algum primitivo. A palavra não evoca em nada o pitecantropo, que marcaria uma etapa na evolução ascendente de uma espécie. Ele é primeiro, também, na medida em que é responsável por toda uma linhagem que dele descende. Sua primazia é de ordem moral, natural e ontológica: Adão é o mais homem dos homens. O símbolo transporta-nos a um nível de consideração completamente diferente do da história.
Além disso, é feito à Imagem de Deus. Sob um ponto de vista simbólico, pode-se entender a expressão no sentido de que Adão é feito à imagem de Deus do mesmo modo que uma obra-prima é feita à imagem do artista que a realizou. Mas em que aspecto essa obra-prima se assemelharia mais particularmente ao seu Criador, se não fosse por aquilo que Deucalião não logrou conseguir, pela aparição do espírito na criação, pela animação da matéria? E é esta realidade do espírito — à imagem de Deus, mas diferente de Deus — que Adão simboliza. Daí derivam as outras inovações no universo: a consciência, a razão, a liberdade, a responsabilidade, a autonomia, todos os privilégios do espírito, porém de um espírito encarnado e, portanto, somente à imagem de Deus, e, não, idêntico a Deus.
Foi por ter desejado identificar-se com Deus que Adão se tornou também o primeiro a errar, com todas as consequências que essa primazia no pecado acarreta para seus descendentes. O primeiro em uma ordem é sempre, de certa maneira, a causa de tudo o que dele deriva nessa ordem. Adão simboliza o pecado original, a perversão do espírito, o uso absurdo da liberdade, a recusa de toda dependência. Ora, essa recusa da dependência para com o Criador não pode conduzir senão à morte, porquanto essa dependência é a própria condição da vida. Em todas as tradições, o homem que tenta se igualar a Deus é punido com sanção fulminante.
Contudo, conforme a doutrina cristã, eis que aparece um outro Adão, Jesus Cristo, o segundo Adão na ordem cronológica, mas também ele o primeiro no sentido místico do termo e, na realidade, mais verdadeiramente primeiro que o primeiro Adão; primo prior, segundo a história; porque ele é o mais homem dos homens numa escala superior, primeiro na ordem da natureza e na ordem da graça, ambas as ordens alcançando nele sua perfeição suprema. Ele é ainda mais do que a aparição do espírito na criação, é a encarnação do Verbo, a própria palavra de Deus feita homem, o homem divinizado. lá não é imagem, é realidade. Para ele o pecado é impossível; o segundo Adão pode apenas conceder a graça, a santidade e a vida eterna, de que havia privado a humanidade o ate do primeiro Adão. O segundo Adão simboliza, portanto, tudo quanto havia de positivo no primeiro, e o eleva ao divino absoluto; simboliza a antítese de tudo o que ele tinha de negativo, substituindo a certeza da morte pela da ressurreição. São Paulo magnificou essa antítese em diversas passagens: O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente; o último Adõo tornou-se espírito que dá vida. Primeiro foi feito não o que ê espiritual, mas o que é psíquico; o que é espiritual vem depois. O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre. O segundo homem vem do céu. (I Coríntios, 15, 45-47 e Romanos, 5,12-17.) Há uma estreita relação entre o primeiro Adão e o Cristo-Novo Adão. Assim, a lenda dirá que Adão morre numa sexta-feira no 14 Nisan (ou Nissan, período que abarca os meses abril-maio, no antigo calendário babilônico) na 9a hora, prefigurando, desse modo, a morte do Cristo. Reencontraremos, na arte, o crânio de Adão ao pé da cruz de Cristo. Conforme a lenda, Adão, prestes a morrer, pede a seu filho Seth para ir ao Paraíso, a fim de colher um dos frutos da imortalidade na Árvore da Vida. O anjo encarregado da guarda do Paraíso recusa-se a dar-lhe o fruto desejado, fazendo-lhe presente, porém, de três sementes. Da boca de Adão morto, uma árvore crescerá dessas três sementes: tornar-se-á, mais tarde, a árvore da Cruz. A fim de bem apreender o simbolismo dos laços entre Adão e o Cristo, pode-se evocar, ainda, o diálogo com Adão no Paraíso de Dante.
As tradições judaicas, com influências iranianas e neoplatônicas, muito especularam sobre o simbolismo dos primeiros capítulos do Gênesis. Adão significa homem terrestre criado por Deus com a terra (em hebraico: ‘adamah: terra lavrada; segundo outra hipótese: terra dos homens). O sopro de Deus dá-lhe vida. Antes disso, conforme a Qabbalah, ele é chamado de Golem. A argila finíssima utilizada por Deus é — segundo o pensamento judeu — tomada do centro da Terra, sobre o monte Sião, considerado o umbigo do mundo. Essa terra representa o mundo em sua totalidade. O Talmude descreve as doze primeiras horas do primeiro dia (ou período) de Adão: 1) a terra é acumulada; 2) a argila transforma-se num Golem; 3) seus membros distendem-se; 4) a alma é-lhe insuflada por Deus; 9) Adão põe-se de pé; 6) Adão dá nome aos seres vivos; 7) recebe Eva; 8) Adão e Eva unem-se e procriam: de dois eles se tornam quatro; 9) proibição sofrida por Adão; 10) desobediência de Adão e Eva; 11) sentença proferida contra eles; 12) Adão e Eva são expulsos do Paraíso. Cada hora corresponde a uma fase simbólica da existência.
A Agadá não se atem estritamente ao texto bíblico; ou melhor, pretende compensar a contradição entre os dois textos do Gênesis (I, 27 e 2, 21), que afirmam, por um lado, uma criação simultânea do homem e da mulher e, por outro, apresentam uma criação de Adão anterior à de Eva (Eva tirada de uma costela de Adão). Segundo a Agadá, a mulher criada simultaneamente com Adão teria sido1. Adão e Lilit não se entendem; Caim e Abel disputam a posse de Lilit. Então, Deus reduziu a pó o primeiro homem e a primeira mulher. Depois, recria em primeiro lugar o homem, e o homem subdivide-se em macho e fêmea.
Conforme a primeira narrativa da Criação no Gênesis, Adão aparece sob um aspecto bissexual; segundo certos autores, ele é hermafrodita. No Midrasch Bereshit Raba, diz-se que Deus criou Adão ao mesmo tempo macho e fêmea. Sentido idêntico é apresentado na Qabbalah que, além disso, fala de Deus sob o duplo aspecto de rei e rainha.
Platão descreve o homem como um ser esférico que gira como uma roda: em sua origem, foi também hermafrodita.
O homem original, em sua forma mais pura, é chamado de Adam Kadmon. Esse Adam Kadmon é o símbolo do Deus vivo no homem. É o mundo do homem interior, que não se pode descobrir senão através da contemplação, o primeiro homem, por antonomásia, aquele que é, por excelência, à imagem de Deus. Ma» essa interpretação da Qabbalah não é a dos exegetas cristãos que encontram, nesse termo, unicamente o primeiro homem histórico.
Na tradição cabalística, Adão seria também uma síntese do universo criado: ele é naturalmente tirado do centro e umbigo da terra (monte Sião), mas todos os elementos reúnem-se em sua criação. Deus reúne de toda parte o pó a partir do qual Adão devia ser feito, tal como exprimem certas etimologias da palavra Adão, que a explicam tanto como abreviação de seus elementos, ou como nomes dos quatro pontos cardinais dos quais ele é feito. Lipse, citado por Scholem, veria em Adão a personificação mitológica da terra; ele seria o eterno símbolo, a marca e o monumento do amor de Deus e da terra. Os elementos telúrico e pneumático agiriam juntos em Adão e seus descendentes.
Adão é igualmente o símbolo do primeiro homem e das origens humanas, conforme outras tradições. O homem primordial é representado na Gália pelo Dispáter (a palavra é latina e não celta), do qual todos os gauleses se dizem descendentes.
Há na Irlanda, como em muitos outros países, diversos homens primordiais, ou ancestrais míticos; em princípio, um para cada raça das que invadiram a Irlanda (o país conheceu cinco ondas invasoras, de acordo com os anais do Lebor Gabala ou Livo das Conquistas). Os dois principais parecem ter sido Tuan Mac Cairill, que passou pelos estados sucessivos de javali, falcão e salmão, e Fintan, poeta e grande juiz deste mundo, no que concerne à sabedoria. Ele foi, sem dúvida, o único homem (justo) que restou após o dilúvio.
Para cada grande época histórica há um homem primordial que desempenha o papel de um novo Adão.
Na análise de Jung, Adão simboliza o homem cósmico, fonte de todas as energias psíquicas. Mais frequentemente, visto sob a forma do velho sábio, Adão corresponde ao arquétipo do pai e do ancestral: é a imagem do ancião, de insondável sabedoria, proveniente de uma longa e dolorosa experiência. Pode, eventualmente, tomar nos sonhos a figura de um profeta, de um papa, de um sábio, de um filósofo, de um patriarca ou de um peregrino. A aparição do velho sábio simboliza a necessidade de integrar à terra a sabedoria tradicional ou, ainda, de atualizar uma sabedoria latente. Seguindo as ideias de Jung, o segundo Adão, cuja cruz se ergue sobre o túmulo do primeiro Adão, tal como mostram várias obras de arte, simbolizaria o surgimento de uma nova humanidade sobre as cinzas da antiga.
O segundo Adão, o Cristo, simbolizaria o self, ou a perfeita realização de todas as virtualidades do homem. Contudo, esse fascinante símbolo de um Adão herói-crucificado-ressuscitado-salvador age como uma carga energética, imanente, que Incita a uma transfiguração interior. O mistério de Jesus surge por inteiro nessa necessidade que cada um encontra em si mesmo de crucificar sua parte mais preciosa, de mortificá-la, de escarnecê-la (de reduzi-la a cinzas) e, graças a essa crucificação, de receber a graça da salvação …Et por isso que o coração do homem está incessantemente ensanguentado e luminoso, sofredor e glorioso, morto e ressuscitado.
O psicanalista poderá ver, nessas três (ases, os símbolos da progressão do homem no caminho da Individuação: a indistinção numa coletividade, a separação do ego que se afirma em sua personalidade virtual, a realização dessa personalidade pela integração de todas às suas forças numa unidade sintética e dinâmica. [DS]
Lilit ↩