Boaventura — Itinerário da mente para Deus
Capítulo V A CONTEMPLAÇÃO DA UNIDADE DIVINA NO SEU NOME PRINCIPAL: O SER
1 Podemos contemplar a Deus não só fora de nós e dentro de nós, mas também acima de nós: fora de nós, pelos seus vestígios; dentro de nós, pela sua imagem; acima de nós, pela sua luz estampada sobre nosso espírito (cf. Sl 4,7). Esta é a luz da eterna Verdade, pois “o nosso espírito foi imediatamente formado pela própria Verdade”.1
Aqueles que se exercitaram no primeiro degrau entraram já no adro que se encontra diante do Tabernáculo. Aqueles que percorreram o segundo avançaram já até o Santo. Aqueles que passaram pelo terceiro degrau penetraram já, com o Sumo Pontífice, no Santo dos Santos, onde dois Querubins da glória, colocados sobre a Arca, cobrem com suas asas o Propiciatório (cf. Ex 25,28). Estes dois Querubins representam os dois modos ou degraus pelos quais nos elevamos às perfeições invisíveis e eternas de Deus; o segundo, os atributos próprios de cada Pessoa.
2 O primeiro método fixa o nosso olhar primeira e principalmente sobre o Ser mesmo, declarando que o primeiro Nome de Deus é “Aquele que é” (Êx 3,14). No segundo método nosso espírito considera o Bem em si mesmo, dizendo que também o Bem é o primeiro nome de Deus. O primeiro destes nomes — o Ser — refere-se particularmente ao Antigo Testamento, que proclama sobretudo a unidade da essência divina2. Por isso foi dito a Moisés: “Eu sou aquele que sou” (Êx 3,14). O segundo nome — o Bem — faz referência ao Novo Testamento, que revela a pluralidade das Pessoas divinas ao batizar no nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo (cf. Ml 28,19).
Por isso Jesus Cristo, nosso Mestre, querendo elevar à perfeição evangélica aquele jovem que afirmava ter observado a Lei, atribui principal e exclusivamente a Deus o nome de bom: “Ninguém é bom — disse então — senão só Deus” (Lc 18,19). Assim, S. João Damasceno (I De Fide Orthodoxa, cap. 9), seguindo Moisés, diz: “Aquele que é é o primeiro nome de Deus”. Dionísio (De Divinis Nominibus, cap. 3 § 1 e cap. 4 § 1), ao contrário, seguindo a Cristo, afirma que o primeiro Nome de Deus é o bem.
3 Quem, pois, deseja contemplar as perfeições invisíveis de Deus referentes à unidade de sua essência, fixe primeiro sua atenção sobre o Ser mesmo. Verá que o Ser mesmo comporta em si tal absoluta certeza, que é impossível concebê-l’O como não existente. Porque o Ser puríssimo exclui essencialmente no pensamento o não-ser, assim como o nada exclui absolutamente o ser.
Com efeito, assim como o puro nada tem absolutamente nada do ser nem de suas propriedades, assim o Ser absoluto nada tem do não-ser. Nem em ato nem em potência. Nem na realidade nem no nosso pensamento. Ora, sendo o nada a privação do ser, nós não podemos concebê-l’O senão por meio do ser. O ser, pelo contrário, para ser conhecido, não tem necessidade duma coisa estranha a ele, porque tudo o que percebemos com a nossa inteligência percebemo-lo ou como não-ser, ou como ser possível, ou como ser real. Ora, se o não-ser não se concebe senão pelo ser, se o ser possível é inconcebível sem o ser real e se o ser designa o mesmo ato puro do ser, deve-se concluir então que o ser é a primeira ideia que se apresenta à nossa inteligência — e este ser é o ato puro. Tal ser, porém, não é um ser particular, porque o ser particular está limitado, por estar misturado de potência e de ato. Menos ainda é um ser análogo, porque este não só não está em ato, mas também nem mesmo existe. O ser puro é, pois, o Ser divino.3
4 É uma estranha cegueira da nossa inteligência não considerar aquilo que vê antes de qualquer outra coisa e sem o que nada conhecer. Mas, assim como o olho, aberto às várias diferenças das cores, não vê a luz por cuja virtude vê as demais coisas ou — mesmo se as enxergar — não as adverte, assim o olho de nossa alma, aplicado aos seres particulares e universais, também não adverte o ser por excelência que está fora de todo gênero, ainda que o mesmo seja a primeira noção e todos os outros seres não possam ser conhecidos senão por ele.
Por isso é verdade que “o olho de nosso espírito, perante o que há de mais manifesto na natureza, é semelhante ao olho do morcego diante da luz” (Aristóteles, II Metaph., t. 1). Habituado às trevas dos seres criados e às imagens sensíveis, parece-lhe não ver nada — mesmo quando contempla o esplendor do Ser supremo. Não pensa que esta escuridão profunda é a mais brilhante das iluminações para o nosso espírito, assim como o olho do corpo, ao enxergar a luz pura, parece-lhe não ver nada.
5 Considera, pois, se puderes, o Ser puríssimo. Compreenderás que é impossível pensá-l’O como derivado de outro ser. Por conseguinte, deve-se necessariamente pensá-l’O como primeiro, pois não pode receber sua existência do nada ou de outro ser. Que ser, com efeito, poderia existir por si mesmo, se o Ser puríssimo não existisse por si e de si?4
Este Ser te aparecerá também como eterno, não tendo absolutamente nada de não-ser e, por conseguinte, como sendo sem princípio e sem fim. Aparecer-te-á, outrossim, como não possuindo senão o ser e, por isso mesmo, sem composição mas simplicíssimo. Aparecer-te-á como privado de toda possibilidade e, por isso, atualíssimo, porque o ser possível tem em si algo do não-ser. Aparecer-te-á ainda sem sombra de imperfeição e, por isso mesmo, perfeitíssimo. Aparecer-te-á, enfim, sem diversidade alguma e, portanto, sumamente uno.
O Ser que é pura, simples e absolutamente o ser é, por conseguinte, o Ser primeiro, simplicíssimo, atualíssimo, perfeitíssimo e absolutamente uno.
6 Essas deduções são tão certas, que, para quem se faz uma justa ideia do ser, é impossível opor uma afirmação contrária: cada uma delas implica necessariamente a outra.
Com efeito, se Deus é o Ser por excelência, é absolutamente primeiro. Por ser absolutamente primeiro, não foi feito por outro nem muito menos por si mesmo. É, pois, eterno.
Se é primeiro e eterno, por isso mesmo exclui toda composição. Portanto, é simplicíssimo.
Por ser primeiro, eterno e simplicíssimo, por isso mesmo não há n’Ele mistura alguma de ato e de potência. É, por conseguinte, atualíssimo.
Por ser primeiro, eterno, simplicíssimo e atualíssimo, é, por isso, perfeitíssimo: nada Lhe falta e nada pode Lhe ser acrescentado.
Por ser primeiro, eterno, simplicíssimo e atualíssimo e perfeitíssimo, é, pelo mesmo, soberanamente uno.
E diga-se outro tanto, por razão da infinita superabundância, com respeito a todas as demais perfeições. Porque “o que se diz dum ser por infinita superabundância não pode convir senão a um só”.5
Se, pois, o Nome de Deus designa o Ser primeiro, eterno, simplicíssimo, atualíssimo e perfeitíssimo, é impossível que não exista ou que não seja um só.
“Escuta, portanto, ó Israel: teu Deus é o único Deus” (Dt 6,4).
Se olhas tudo isso na pura simplicidade de tua alma, serás iluminado, de certo modo, pelos esplendores da Luz eterna.
7 Ainda há mais, porém, para aumentar a tua admiração. Com efeito, este Ser é, ao mesmo tempo, primeiro e último, eterno e presentíssimo, simplicíssimo e máximo, atualíssimo e imutabilíssimo, perfeitíssimo e imenso, soberanamente uno e, no entanto, onímodo.
Se considerares todas essas coisas com espírito puro, serás penetrado de maior luz, porque verás que Deus é precisamente o último por ser o primeiro. Sendo, efetivamente, o primeiro, Ele cria tudo em vista de Si mesmo. É mister, pois, que seja o fim último de todas as realidades — isto é, o começo e a consumação, o Alfa e o Ômega.
Verás que é presentíssimo, precisamente porque é eterno. Sendo eterno, não procede de nenhum outro. Nem cessa de existir nem passa dum estado para outro. Portanto, não tem passado nem futuro, mas é só presente.
Verás que é o maior porque é simplicíssimo. Simplicíssimo na sua essência, deve ser o maior no seu poder, porque “quanto mais concentrado é o poder em um, tanto mais infinito é” (palavras do autor anônimo do Liber de Causis, Prop. 17).
Verás que é imutabilíssimo porque é atualíssimo. E, enquanto tal, é Ato puro. Ora, aquele que é pura atualidade nada de novo adquire nem nada perde do que tem. Não admite, pois, mudanças.
Verás que é imenso porque é perfeitíssimo. Sendo a perfeição absoluta, não se pode pensar nada que seja melhor, mais nobre, mais digno e, consequentemente, maior do que Ele. Tal Ser é imenso.
Enfim, verás que é onímodo porque é soberanamente uno. Sendo soberanamente uno, é princípio universal de toda a multiplicidade dos seres. Por isso mesmo é sua causa eficiente, exemplar e final — isto é, “a fonte de sua existência, a luz de sua inteligência e a norma de sua vida” (S. Agostinho, VIII De civitate Dei, cap. 4).
O Ser puríssimo é, portanto, tudo, não como se fosse a essência de todas as coisas, mas enquanto é a causa perfeitíssima, universalíssima e suficientíssima de todas as essências — causa cujo poder, por ser soberanamente una na sua essência, é sumamente infinito e múltiplo na eficácia.
8 Recapitulando, digamos: O Ser puríssimo e absoluto — isto é, o Ser por excelência — é o primeiro e o último. Por isso é a origem de todas as coisas e o fim que as consuma.
Enquanto eterno e onipresente, abrange e penetra toda a duração do Tempo como se tosse seu centro e sua circunferência.
Sendo simplicíssimo e máximo, é tudo em todas as coisas e é tudo fora das mesmas. É como que “uma esfera inteligível, cujo centro está em toda a parte e cuja circunferência está em nenhum lugar”.6
Enquanto atualíssimo e imutabilíssimo, “permanecendo estável, dá movimento a todo o Cosmo” (Boécio, III De Consolatione Philosophiae, Metr. 9).
Enquanto perfeitíssimo e imenso, está dentro de todas as coisas — sem ser, porém, incluído por nenhuma — fora de todas as coisas — sem estar, contudo, excluído delas — acima de todas as coisas — sem estar, porém, prostrado.
domo sumamente uno e onímodo, é “tudo em todas as coisas” (1 Cor 15,28), embora elas sejam numerosas e Ele um só. A razão disso está em que na sua simplicíssima unidade, puríssima verdade e autenticíssima bondade, possui todo o poder, toda a essência exemplar e toda a comunicabilidade. Por isso, todas as coisas “são d’Ele, por Ele e n’Ele” (Rom 11,36), porque é todo-poderoso, infinitamente sábio e absolutamente bom.
Vê-l’O perfeitamente é possuir a felicidade, de acordo com a palavra dita a Moisés: “Eu mostrar-te-ei todo bem” (Êx 33,19).
NOTAS
S. Agostinho, De Diversis Quaestionibus LXXXIII, Quest. 5, nn. 3-4. Aliás E. Bettoni considera este capítulo do Itinerário, pela sua sobriedade e poder dialético, um dos exemplos mais admiráveis em que S. Boaventura “em poucas páginas sintetiza as mais elevadas especulações humanas em torno aos atributos divinos”. Op. cit., p.57. ↩
É óbvio que a “definição” que Deus dá a si mesmo em Êxodo 3,14 não é — nem pretende ser — uma expressão metafísica da essência divina, mas sublinha vigorosamente a presença salvífica e pessoal de Deus na história. “O nome de Jahveh, sob o qual se manifesta, responde à obra que persegue. Sem dúvida alguma este nome comporta um mistério; por si mesmo diz algo inacessível: ‘Eu sou aquele que sou’ (3,14); ninguém pode forçá-lo, nem mesmo penetrá-lo. Mas diz também algo positivo, uma presença extraordinariamente ativa e atenta, um poder invulnerável e libertador, uma promessa inviolável: ‘Eu sou’. O verbo ser, ao qual certamente faz alusão o nome de Jahveh, se não expressa imediatamente o conceito metafísico da existência absoluta, designa em todo caso uma existência sempre presente e eficaz, um adesse (estar-presente) mais do que um esse (ser). Mas esta presença abrange o universo desde o seu primeiro dia até o último, e unifica o passado, o presente e o futuro”. Xavier Léon-Dufour (ed.), Vocabulaire de Théologique Biblique (Les Editions du Cerf, Paris 1962), art. Dieu, col, 218. Mas — segundo a feliz formulação de E. Gilson — “se não há metafísica no Êxodo, há uma metafísica do Êxodo e vemo-la se constituir bem cedo nos Padres da Igreja, dos quais os filósofos da Idade Média não fizeram senão seguir e explorar as diretivas neste ponto”. L’Esprit de la Philosofia Médievale (Libr. Philosophique J. Vrin, Paris 1948) p.50, nota 1. ↩
“Quando Deus diz que Ele é o ser, se o que Ele diz tem para nós um sentido racional qualquer, é em primeiro lugar que o nome que Ele se deu significa o ato puro de existir. Ora, este ato puro exclui a priori todo não-ser. Da mesma maneira que o não-ser não possui absolutamente nada do ser nem de suas condições, assim também o Ser não é afetado por nenhum não-ser, nem atualmente nem virtualmente, nem em si nem do nosso ponto de vista. Ainda que leve na nossa linguagem o mesmo nome que o mais geral e o mais abstrato de nossos conceitos, a ideia do Ser significa, pois, algo radicalmente diferente”. É claro que para S. Boaventura esta capacidade para conceber o ser abstrato está estreitamente ligada à relação ontológica que nos suspende em Deus — a problemática de Deus é, filosoficamente, inseparável da problemática gnoseológica: cf. cap. III, nota 3 e 10. “Mas não é como um conceito que Deus nos convida a pô-lo, nem mesmo como um ser cujo conteúdo seria o dum conceito. Para além de todas as imagens sensíveis e todas as determinações conceituais, Deus se coloca como o ato absoluto do ser na sua pura atualidade. O conceito que d’Ele nós temos, fraca analogia duma realidade que a transborda por todas as partes, não o podemos explicitar senão neste juízo: O Ser é o Ser, posição absoluta do que, estando para além de todo objeto, contém em si a razão suficiente dos objetos. Por isso se pode dizer com razão que o excesso mesmo de positividade que oculta a nossos olhos o ser divino é, contudo, a luz que esclarece tudo o mais: ‘esta escuridão profunda é a mais brilhante das iluminações para o nosso espírito”. E. Gilson, L’Esprit…, pp.52-51. ↩
Seja o que for do assim chamado “argumento” de S. Anselmo (cf. Proslogion, cap. 4), a habitual censura levantada contra ele — passagem ilegítima da ordem ideal para a ordem real — não pode ser dirigida, segundo E. Bettoni, contra a argumentação de S. Boaventura. “A ideia de Deus, da qual ele parte, não é uma ideia constituída pela minha mente, nem pela mente de nenhum homem, mas uma ideia que se impõe e é vivida na mente de cada um. Não é senão o testemunho duma presença real e é uma força que me faz pensar e, neste sentido, não depende da minha mente, mas, antes, é superior a ela. Portanto, na argumentação de S. Boaventura não se infere uma realidade a partir duma ideia, mas se descobre uma realidade que está sob e se revela através duma ideia, na qual, por assim dizer, esta realidade age. Portanto, nenhum homem pode seriamente negar a existência de Deus, desde que pense e julgue em virtude de Deus e neste sentido o experimente. (…) Aquelas que soem chamar-se demonstrações da existência de Deus não são senão considerações dirigidas a formar-nos um conceito exato de Deus, isto é, determinar exatamente a ideia confusa que d’Ele temos”. Op. cit., p.56. Segundo E. Gilson. S. Boaventura teria visto muito bem que “a necessidade do ser de Deus quoad se (considerado em si mesmo) é a única razão suficiente de sua existência quoad nos (considerado com relação a nós). (…) Toda a metafísica bonaventuriana da iluminação está atrás deste texto, prestes a explicar por uma irradiação do ser divino sobre nosso pensamento a certeza que nós temos de sua existência”. L’Esprit…, p.60. Cf. ainda do mesmo Autor, La Philosofia…, pp.101-118. ↩
Aristóteles, V Topic. cap. 3. Cf. ibid., VII, cap. 1. A tradução que desta passagem faz Ch. de Bordeaux, com bastante independência, exprime assim o sentido da conclusão: “Estes atributos devem ser tomados não só em superlativo relativo, que estabelece uma comparação com os outros seres, mas também em superlativo absoluto. Deus não é somente o mais perfeito dos seres, mas é a perfeição mesma; ora, a perfeição absoluta não pode convir senão a um só”. Op. cit., p.138. ↩
Alano de Lilla, Theologicae Regulae, Regul. 7. Diz aí, explicando essa expressão, que a criatura é centro porque assim como o tempo, comparado com a eternidade, é apenas um momento, assim também a criatura, comparada com a imensidade divina, é só um ponto ou um centro. ↩