Evangelho de Tomé – Logion 35

EVANGELHO DE TOMÉLogion 34=>LOGION 35<=Logion 36


Jesus disse: não é possível que alguém entre na casa do forte e a tome pela violência, a menos que lhe ate as mãos; então transtornará a casa. (Roberto Pla)


EVANGELHO DE JESUS: REINO DIVIDIDO


Hermenêutica
Roberto Pla
Antes de tudo há que se saber a quem chama Jesus “o forte”. Nos evangelhos canônicos, na passagem correlata, os escribas e fariseus acusavam Jesus de expulsar os demônios por Belzebu, príncipe dos demônios, e Jesus argumentava em defesa própria que isso equivale a imaginar um reino dividido contra si mesmo, o de Belzebu que, em tal caso, não poderia subsistir. Além disso, a suposição de que as curas as faz Jesus possuído por um “espírito imundo”, significam uma blasfêmia contra o Espírito Santo.

A tradição cristã em geral parece ter pensado que quando Jesus fala de prender “o forte da casa”, se refere a Belzebu enquanto príncipe dos demônios, mas tal suposição é errada, sem dúvida. Belzebu, ou melhor, Baal Zebub, um de cujos significados é o ser “dono da casa”, é o nome que deram os cananeus a seu ídolo e resulta inadequado imaginar que Jesus era tão imaturo como aqueles escribas e fariseus que concediam vida operante demoníaca à estatua do deus inexistente retratado na mente do povo de Canaã.

Longe de tal opinião supersticiosa, assinala Jesus que para efetuar qualquer cura de ordem psíquica, quer dizer, para sanar a alma de um mal influxo imaterial, ou como o evangelho diz: de um “espírito imundo” que a domina, é necessário antes de tudo reduzir totalmente ao ”adversário”, sem recorrer para isto ao concurso de outroespírito imundo”, mas ao Espírito de Deus, cuja ação de salvação se estende não somente a este mundo visível, mas também ao outro, invisível.

É ao Espírito de Deus a quem toca curar a alma dos adventícios e nocivos conteúdos mentais, posto que a alma é a casa do Espírito, uma de suas mansões, tal como se disse: “Não sabeis que sois o Santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?” (1Cor 3,16). Quanto ao “forte”, é o conjunto daquelas paixões que invadem e em ocasiões dominam a alma com seu influxo de ambições terrenas até o ponto de converter-se, tal como se diz de Baal Zebub, em “dono da casa”. Frente a este terrível adversário o primeiro que há de se fazer é prender ao “forte” por meio do uso “violento”, enérgico, da virtude e da oração, e logo deixar que o Espírito de Deus recupere mansamente sua posse da Casa que é sua e transtorne ou dissolva todas as edificações feitas sobre a areia pelo “forte” eventual.

A evocação testamentária desta purificação ativa da casa por meio de uma ação “violenta” está feita em um texto de Mateus: “O Reino dos Céus sofre violência e os violentos o arrebatam” (Mt 11,12). Além do mais, a concreção dos termos de tal purificação ativa, a traz o evangelista quando menciona uma passagem dos profetas: “Minha Casa será chamada Casa de Oração; mas vós fazeis dela uma cova de bandoleiros” (Is 56,7; Jer 7,11; Purificação do Templo). Os quatro evangelistas canônicos se recordam desse texto confeccionado por eles com dois fragmentos conjuntados de Isaías e Jeremias, e o citam na ocasião de um momento evangélico memorável que se pode epigrafar como a Purificação do Templo. A versão mais extensa destas cenas é a que transmite o relato joanico.

A Purificação do Templo deve entender-se em seu sentido “oculto” a limpeza de todas as impurezas psíquicas aderidas ou manifestadas por adesão em e pelo corpo. Esta interpretação implica no reconhecimento de uma identidade figurada, corpo = templo, de bastante uso na linguagem testamentária. As passagens onde tal identidade aparece são muitas e validam plenamente esta interpretação “oculta”. A afirmação mais conclusiva a proporciona o evangelista João uma pouco mais acima na mesma perícope da purificação do templo: “Mas ele falava do Santuário de seu corpo” (Jo 2,21).

Ao denominá-lo “Santuário” não se referia Jesus unicamente a seu corpo que havia de ressuscitar como templo espiritual de onde emanam rios de água viva, pois o Apóstolo fala repetidas vezes desta identidade com referência explícita a todo corpo hominal, já que é no corpo de cada um de nós onde se faz mais específica a necessidade de purificar o Templo.
*Ou não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de Deus, e que não sois de vós mesmos? (1Co 6:19)1.

Sem dúvida, ao nomear tal identidade se referem, tanto Jesus como o Apóstolo, a um corporeidade psicossomática, pois a purificação se atém, como é lugar conhecido na doutrina de Cristo, não ao que entra na boca (material), mas ao que sai da boca (anímico), com o qual se refere às impurezas da alma (v. O MAL DE DENTRO). Se pode afirmar, por outro lado, que o “corpo natural” ao qual se refere Paulo quando tenta explicar aos coríntios o modo de ressurreição, é tanto corpo de carne, como de psyche (nefes) (v. 1Co 15:39-44).

As cenas da Purificação do Templo as incorpora o evangelista João no período inaugural da Primeira Páscoa, do primeiro “passo” ascendente espiritual. São estes os lugares nos quais os sinóticos explicam os acontecimentos do batismo de Jesus no Jordão, e é nesse sentido batismal no qual se deve interpretar a Purificação do Templo. Esse batismo de imersão na água = psyche, o “interioriza” o relato joanico para devolver-lhe seu sentido pristino de metanoia, quer dizer, de “conversão” ao interior do templo próprio, a fim de escrutá-lo atentamente e levar a cabo, ainda com uso dessa violência psíquica — tão mal chamada “santa ira” (v. orge) por quem a olha do ponto de vista “manifesto” — a limpeza purificadora que serve para prender ao adversário “forte” acomodado nos conteúdos psíquicos que não o pertencem.

O chicote que se diz ter usado Jesus para a Purificação do Templo ou limpeza desse templo interior, credita a violência tensa e tenaz que exige o Reino como obra prévia ao ato de ser arrebatado. É o preço da bem-aventurança, um cumprimento que somente se alcança quando se padece fome e sede de justiça até a extenuação (v. Bem-aventurados). Pelo que se expressa no relato é possível entender que os pensamentos que brotam e vivem “não presos”, livres de toda atenção da metanoia, tendem a interceptar a percepção da luz no Santuário; são como mercadores da alma. eles são, com efeito, os que “fazem da Casa do Pai, uma casa de mercado”, longe do comportamento inocente das ovelhas e da simplicidade das pombas.
*Eis que vos envio como ovelhas ao meio de lobos; portanto, sede prudentes como as serpentes e inofensivos como as pombas. (Mt 10:16)

É certo que o viver cotidiano só pode ser interpretado pelo homem “terreno” como um trabalho incessante de mercadores e cambistas que se instalam no templo com fins de crescimento próprio. No entanto, para arrebatar o Reino é necessário que a Casa do Pai fique antes livre do “forte”, de todo “forte” arraigado no coração do homem. O que se diz no evangelho é que somente com violência interior, com energia, é possível consumar o grau de humildade e de esquecimento generoso de si mesmo que a perfeição exige. Mas só assim é como a purificação do “Santuário” de Deus vivo, que somos nós, pode chegar a cumprir-se o mistério de desnudez em espírito que anuncia João Batista: “É preciso que ele cresça e que eu diminua” (Jo 3,30).
*E que consenso tem o templo de Deus com os ídolos? Porque vós sois o templo do Deus vivente, como Deus disse: Neles habitarei, e entre eles andarei; e eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo. (2Co 6:16)

Sem dúvida, a expulsão de mercadores e cambistas aderidos ao Santuário próprio como espíritos impuros, vai acompanhada do crescimento simultâneo do Filho do Homem, o morador real e único do Templo. A diminuição prévia e necessária é a que se acha escrita no saltério, segundo o recorda o evangelista:
*E os seus discípulos lembraram-se do que está escrito: O zelo da tua casa me devorará. (Jo 2:17)

  1. O Apóstolo parece recordar a declaração de Jesus: “O Espírito, mora convosco e em em vós está” (Jo 14,17).[]