Willis Barnstone
Como nos outros evangelhos, não há evidência interna da autoria do livro de Marcos. Uma figura da igreja primitiva, o bispo Papias (cerca de 130-140 d.C.), afirma que Marcos era João Marcos, um colaborador próximo de Pedro, e que o Evangelho de Marcos é essencialmente um arranjo das pregações de Pedro em Roma. O bispo Irineu, do século II, também coloca Marcos em Roma. Outra tradição afirma que Alexandria é o local de origem. Outros supõem que, pelo fato de o evangelho de Marcos ser provavelmente o mais antigo, ele foi composto em Israel. Marcos foi escrito pelo menos trinta ou quarenta anos após a morte de Yeshua, e os nomes dos autores dos evangelhos foram anexados aos evangelhos mais de cem anos após a morte de Yeshua. As tradições que afirmam a autoria dos evangelhos frequentemente negam umas às outras, e aqui, como em outros lugares, nenhuma tem uma forte probabilidade histórica. A autoria no Novo Testamento continua sendo um enigma.
Assim como Lucas I.1, Marcos I.1 começa com a apresentação das “boas novas” sobre Yeshua, o Mashiah. Marcos enfatiza os milagres de Yeshua e seus poderes de cura, o drama e o mistério de sua morte. Os primeiros versículos citam o profeta Isaías para provar que Yeshua é “a voz do que clama no deserto” e que, portanto, ele é o mensageiro de Deus. Mas depois dessa declaração inicial, Marcos mergulha diretamente nas histórias de João Batista e de Yeshua tentado por quarenta dias no deserto por Satanás (o que é paralelo aos quarenta anos de Moisés no deserto tentado por Baal). Segue suas peregrinações pela terra de Israel, onde ele recebe discípulos e multidões de seguidores, que o acompanham em seu ministério. Marcos nos apresenta uma série de milagres, ensinamentos por meio de parábolas e, finalmente, a “Semana da Paixão” da prisão, julgamento, morte, sepultamento e desaparecimento de Yeshua do túmulo. Aqui o evangelho termina. Esse suposto final abrupto incomodou os teólogos e fez com que alguns especulassem que temos um evangelho truncado ou inacabado. O mais preocupante é que não há menção de Cristo ressuscitado e, como Marcos é a fonte de Mateus e Lucas, a ausência de um Yeshua ressuscitado não é desejável. Como resultado provável desse desconforto com este final, dois finais posteriores foram anexados a Marcos, o “Final mais curto de Marcos” e o “Final mais longo de Marcos”. No final mais curto, Yeshua envia a palavra da salvação eterna de leste a oeste. No mais longo, Yeshua aparece ressuscitado diante de Maria Madalena e dos discípulos e, em seguida, descreve Yeshua ascendendo ao céu. O final mais curto pode ter sido adicionado no quarto século, e o mais longo, no terceiro ou segundo século. Ambos os finais são chamados de “órfãos”, porque são espúrios e não existem nos manuscritos mais antigos, que são os códices Vaticanus e Sinaiticus.
Marcos é frequentemente caracterizado como um autor cujo grego é rude e rudimentar, em contraste especialmente com Lucas, que é mais clássico, e João, que é claramente influenciado por modelos gnósticos e filosóficos gregos. Mas Marcos é, em muitos aspectos, o maior estilista entre os evangelistas. Marcos escreve com clareza, concisão, poder dramático, dicção mínima e marcante. O final original do Evangelho de Marcos pode ser menos satisfatório como teologia, mas é extremamente dramático e misterioso em sua subestimação do sublime terror do desaparecimento de Yeshua da tumba. Quando as duas Marias entram no túmulo e descobrem que Yeshua não está lá, Marcos escreve: “Então elas saíram e fugiram do túmulo, tomadas de tremor e êxtase. E não disseram nada a ninguém. Estavam com medo” (16.8).
Robert J. Miller
Segundo a análise empreendida no notável trabalho de Robert J. Miller, THE COMPLETE GOSPELS, dentro do projeto «SCHOLARS VERSION», o Evangelho de Marcos apresenta um relato vívido e poderoso da estória de Jesus. Logo de início vemos Jesus emergir no cenário público, batizado e vitorioso sobre Satã, mestre no entanto misterioso. Um defensor relutante dos doentes e dos possuídos pelos demônios, Jesus sustenta uma batalha contra os espíritos impuros alinhados contra ele e sua causa, «o império de Deus». Multidões são atraídas para seus feitos, formando coros de curiosos, por vezes simpáticos, mas frequentemente ameaçadores. O que atrai estas multidões é o sucesso rápido de Jesus como um curador pela fé e um exorcista extraordinário; logo, entretanto, Jesus vai confrontar estas multidões com um discurso estranho que tem muito a dizer.
O Evangelho de Marcos é geralmente considerado o evangelho escrito mais antigo. P documento ele mesmo não menciona seu autor, nem o lugar, tempo ou circunstâncias de sua origem, mas escolásticos inferiram que o evangelho foi composto nos tempos da Guerra romano-judaica (66-70), provavelmente na Síria que falava a língua grega então. As tentativas de conexão do autor anônimo com diferentes «Marcos» não passam de conjecturas sem provas.
Se Marcos é o primeiro evangelhos, seus predecessores não seriam evangelistas, mas contadores de estórias, profetas, mestres, missionários ou organizadores de comunidades, que passaram memórias e estórias de Jesus. Marcos usou várias fontes para sua narrativa, provavelmente a crescente narrativa oral. É impossível até o momento identificas as fontes de Marcos.
A composição é vívida e usa um estilo de estória oral direta. O grego empregado é a língua informal de pessoas ordinárias da cultura mediterrânea no século I. Tudo no relato de Marcos parece acontecer «imediatamente» ou «logo», tradução do termo grego euthus, muito repetido em Marcos. Marcos gosta de usar o verbo no presente mesmo descrevendo eventos passados, dando mais vida as estórias, ao mesmo tempo um tom não culto. Muitas sentenças em Marcos começam com a palavra «E». Os detalhes das estórias são postergados até que seu relato esteja mais adiantado, afirmando assim o estilo oral, característico deste evangelho.
Durante a cópia e re-cópia deste evangelho, os escribas cristãos introduziram algumas grandes expansões no texto, sendo a mais famosa ao final da estória, falando das aparições de Jesus ressuscitado. A descoberta contestada, feita por Morton Smith, de uma correspondência de Clemente de Alexandria, indicou a existência de uma versão alternativa de Marcos, que Clemente chama «Marcos mais espiritual» ou «Marcos místico».
Roberto Pla: Evangelho de Tomé – Logion 113
O predomínio do oculto não é o habitual em Marcos e Mateus, pois seus evangelhos, como ocorre com a maior parte dos escritos neotestamentários que foram admitidos no cânon, costumam manter um bom equilíbrio na expressão simultânea das duas vertentes oculta e manifesta. Por isto, hoje em dia, depois de quase vinte séculos de leitura manifesta, não resulta fácil descobrir o “sinal” que permita estudar a exegese oculta.
É seguro que a obtenção de um equilíbrio expositivo segundo as vertentes manifesta e oculta exigiu dos primeiros autores cristãos a prática de uma consumada ciência hermenêutica, dificuldade que salvaram apoiados na tradição veterotestamentária. Isto explica o elogio que o ancião Papias fez de Marcos ao dizer dele que foi um cuidadoso “hermeneuta” de Pedro.
Tal notícia demonstra que não se limitou Marcos a pôr por escrito as memórias de Pedro, senão que ademais, as “interpretou”, sem que isso significasse “descuido” ou “engano”. A bondade da interpretação supõe neste caso a capacidade de conciliar no relato evangélico a dupla vertente oculta e manifesta, parelhas e sem faltar à verdade em nenhum de seus lados.
CAPÍTULOS: João Batista; Batismo de Jesus