Karol Wojtyla — A fé segundo São João da Cruz
2. PROPORÇÃO DE SEMELHANÇA.
Prossigamos a análise de Subida II 8. Na explicação da idéia básica parece que o Doutor Místico ilumina com maior clareza que nos exemplos citados o sentido de “meio proporcionado”. Em Subida II 8,3 introduz de imediato uma aplicação luminosa: Todo meio, seja qual for, tem que unir o entendimento com Deus.
Estamos diante do estabelecimento direto da questão da fé dentro da área de sua própria natureza:
“De onde, para que o entendimento se venha a unir nesta vida com Deus segundo se possa, necessariamente deve tomar aquele meio que une a Ele e tem com Ele semelhança próxima”.
Eis aqui o ponto central no qual as qualidades próprias do meio proporcionado manifestam seu pleno valor. Trata-se aqui, evidentemente, de meio de união com Deus, de um meio ao qual a razão de semelhança é imprescindível. Pois bem, essa qualidade absolutamente necessária nenhuma criatura possui:
“Entre todas as criaturas superiores ou inferiores, nenhuma existe que proximamente se aproxime de Deus nem que tenha semelhança com seu ser”.
Poderíamos expressar a afirmação em forma causal, aplicando o critério antes aludido: nenhuma criatura pode se aproximar de Deus, porque nenhuma possui semelhança com seu ser.
É, no fim das contas, o que o Doutor Místico diz na continuação:
“Porque, embora seja verdade que todas têm, como dizem os teólogos, certa relação com Deus e traços de Deus, umas mais e outras menos segundo seu grau de excelência, entre Deus e elas não existe nenhuma relação nem semelhança essencial, antes a distância que existe entre seu divino ser e o delas é infinita”.
O texto é extremamente valioso porque permite interpretar o que para ele significa “semelhança”. O Doutor Místico se adapta à opinião comum dos teólogos, que afirmam que entre Deus e as criaturas há certa semelhança quanto ao ser (‘in ratione entis’, ou melhor, ‘in ratione essendi’). Ou seja, enquanto existem, enquanto têm ser, as criaturas são semelhança (analógica) de Deus; mais ainda: quanto maior perfeição de ser têm, tanto melhor nesta ordem se assemelham a Deus. O que se nega é a “semelhança essencial”: entre o que Deus é e o que é qualquer criatura, por mais perfeita que seja, não há semelhança alguma, mas infinita distância.
O texto sanjoanista aponta claramente para o plano das essências. Suas palavras repetem, quase com idênticas palavras, a fórmula do concílio Lateranense IV:
“Entre o Criador e a criatura não pode haver tanta semelhança, que a dessemelhança entre eles não seja maior” (Inter Creatorem et creaturam non potest tanta similitudo notari, quin inter eos maior sit dissimilitudo notanda — Denz. 432).
A passagem citada de São João da Cruz reduz claramente essa dessemelhança ao plano da essência. Portanto, nenhuma criatura, ainda que a mais perfeita, pode se igualar por natureza à divina essência. O que Deus é, seja o que for, é absolutamente dessemelhante ao que é qualquer criatura, porque não há semelhança essencial possível entre a Divindade e qualquer natureza criada.
O pensamento do Doutor Místico está livre de qualquer filete de ambigüidade. Porem ainda assim convém insistir que no texto trata-se propriamente da absoluta distinção entre a realidade divina e a realidade criada de ambas as naturezas. E, sob este aspecto, o que o Doutor Místico está nos propondo é a distinção entre o natural e o sobrenatural. A razão da “distância infinita” não se baseia precisamente em que as criaturas distam ou se distinguem infinitamente de Deus, mas na falta de “semelhança essencial”. Em resumo: a diferença de natureza fundamenta, no texto citado, a distinção absoluta Deus-criatura.
A afirmação da absoluta distinção entre o natural e o sobrenatural desempenha o papel de premissa maior de um silogismo que a rigor se encontra no texto e que verdadeiramente informa toda a doutrina mística de São João da Cruz, constituindo um belo ornamento de sua lógica incomparável, como seus comentadores têm rssaltado e celebrado com freqüência.
Tratemos, pois, de procurar a premissa menor no texto. Para isto será necessário recordar de onde brota toda a questão da “semelhança essencial”. Já vimos que nasce do “meio proporcionado”. Que é essencial à razão de tal meio. Negando, como ressaltamos, “semelhança essencial” de qualquer criatura, por muito perfeita que seja, a Deus, é fácil pôr sobre a mesa a seguinte conclusão: nenhuma criatura pode servir de meio proporcionado para a união com Deus, já que entre criatura e Deus existe dessemelhança essencial.
Em que se fixa a carência de “semelhança essencial”? Na natureza mesma, já que o ser é constituído por sua própria natureza. A natureza da criatura aparece, portanto, como “o lugar próprio” e como a causa da “dessemelhança”. De onde qualquer criatura deve ser excluída da função de meio proporcionado para a união com Deus. Na linha da natureza não existe proporção de semelhança entre o Criador e a criatura. Segue-se, pois, que as criaturas não podem servir de meio para a união com Deus.
Devemos acrescentar ainda: não podem constituir meio de união com Deus em relação ao entendimento:
“Todas as criaturas não podem servir de meio proporcionado ao entendimento para chegar a Deus”.
As últimas palavras são uma reveladora e bela surpresa: “chegar a Deus”, alcançar a Deus, colocar o entendimento de maneira efetiva na Divindade até tocar a íntima essência de Deus.
A robusta expressão — “chegar a Deus” — determina por sua vez, de um modo novo, a razão da semelhança, reduzindo-a ao plano da representação: nenhuma criatura, invadida pela luz de seu próprio entendimento, é capaz de revelar ou desvendar a essência divina (Subida II 8,3).
Este é o sentido do texto de Subida II 8,3. Já indicamos como esta distância entre Deus e a criatura se emprega aqui à área dinâmica, ou seja, em relação à potência cognoscitiva. E então a razão da “semelhança” adquire um novo valor: passa da ordem real para a ordem intencional.
Por conseguinte, tudo o que estamos explorando nos oferece um largo panorama para a compreensão de todo o tema: como se apresenta e se resolve o problema da fé nas obras de São João da Cruz.
A epígrafe do capítulo ilumina com forte luz a oposição ou negação de que as criaturas possam, por si, servir de meio para a união com Deus. Como regra diz em seguida:
“Não há semelhante a ti entre os deuses, Senhor (Sal 85,8), chamando deuses aos anjos e almas santas. E em outro lugar: Deus, teu caminho está no santo. Que Deus grande existe como nosso Deus? (Sal 76,14). Como se dissesse: O caminho para vir a ti, Deus, é caminho santo; isto é, pureza e fé”.
Assim, a fé fica imediatamente elevada acima das mais altas criaturas. Todas elas, com efeito, se excluem como meio para a união, papel que se reserva para a fé. Ela é o meio proporcionado de união. Portanto, entranha uma semelhança essencial com Deus.
Quer ele dizer que existe, de alguma maneira, conformidade entre a essência da fé e a Divindade, que há alguma ‘conveniência’. Porem seguidamente, devemos lembrar, isto ocorre na ordem do entendimento, que se une a Deus pela fé, e, por conseguinte, esta é o meio proporcionado.
Em conseqüência, e sem ultrapassarmos os limites, podemos insinuar: o breve e denso texto de Subida II 8,3 nos apresenta meridianamente a questão da fé, indicando ao mesmo tempo, se bem que ainda de um modo genérico e confuso, sua própria índole entitativa e intencional.
Já indiquei anteriormente que o texto acima contem expressamente formulado o silogismo que vem a se constituir a chave de abóbada da “lógica mística” de São João da Cruz. Caberia propor ou reduzir a forma simplificada esse silogismo. Eis aqui:
(M) — Nenhuma criatura, vista na natureza que a constitui, possui semelhança essencial com Deus.
(m) — Mas tal semelhança é necessária para exercer a função de meio proporcionado de união com Deus.
(Concl.) — Portanto, nenhuma criatura, em seu ser natural, pode servir de meio proporcionado para a união com Deus.
Este primeiro silogismo se projeta a toda a doutrina mística de São João da Cruz, invadindo-a e informando-a profundamente.
O segundo silogismo se refere já concretamente à fé, tirando do anterior a afirmação fundamental sobre sua natureza:
(M) — A fé serve de meio proporcionado para a união do entendimento com Deus.
(m) — Pois bem, o meio proporcionado de união com Deus deve possuir uma semelhança essencial com Ele.
(Concl.) — Portanto, a fé possui tal semelhança som Deus. É, pois, um meio possuidor da “proporção de semelhança”.
Graças a esta argumentação, vemos nosso tema centrado em sua exata perspectiva. Igualmente, a “semelhança essencial” nos introduz, sem titubeios, nas entranhas e ordem das essências: ao negar a possibilidade às criaturas, a negação se refere unicamente a suas essências; ao atribuir a possibilidade à fé, estamos já tocando em sua essência mesma. Deste modo, fica bem estabelecida a questão sobre a natureza da fé segundo São João da Cruz: o constitutivo da fé é algo que se assemelha à Divindade, já que a fé se fundamenta nessa semelhança.
Simultaneamente, no texto sanjoanista citado se concede à semelhança uma ordem própria relativamente ao entendimento: a fé tem valor de semelhança por sua índole intelectual, e, em conseqüência, une essa potência a Deus. Deste ponto de vista, o texto é de máxima importância para resolver nosso problema. Teríamos que partir, portanto, desta tese: a fé faz com que Deus seja evidente ao entendimento, e disso nenhuma criatura é capaz, por muito elevada que seja. A fé, pois, por sua essencial semelhança, pode unir o entendimento a Deus.
Dito em termos mais simples: a fé possui uma semelhança essencial com Deus enquanto entende. E isto nos situa em uma ordem ou plano intencional.
Ambos os aspectos, segundo se depreende da análise, estão latentes e ainda patentes no texto sanjoanista.
Quanto ao primeiro, fixam-se os limites diferenciais entre o natural e o sobrenatural: a fé penetra a fronteira do sobrenatural. Possui, portanto, aquela “relação e semelhança essencial com Deus” de que carecem inclusive as supremas criaturas naturais. Com isto chegamos à íntima essência da fé, que lhe permite desempenhar a função de meio de união com Deus.
Quanto ao segundo, já que a “semelhança essencial” é atribuída em relação a sua capacidade intelectiva, a fé se perfila como uma virtude que faz com que o entendimento alcance a Deus segundo a essência divina.
Isto abriga o contexto sanjoanista, e se verá melhor ao analisar Subida II 8, 4-5. As outras criaturas não podem elevar o entendimento até a essência divina, nem o entendimento que lhes é conatural é capaz, por si só, de logra-lo. Pelo contrário, a fé sim. Por que? Porque as demais criaturas não têm em si mais que sua própria essência; ao passo que a fé possui em sua essência uma “semelhança” com a essência de Deus.
Daqui se deduz que desempenha a função de meio proporcionado em um plano intelectivo por duas razões:
– primeira — por sua essencial semelhança com Deus. Ou seja, por pertencer à ordem sobrenatural;
– segunda — por incluir essa semelhança essencial uma relação direta com a virtude ou potência intelectiva.
Ambas as dimensões — a entitativa e a intencional ou dinâmica — determinam que a fé pode servir de meio proporcionado para a união do entendimento com Deus.
E, por isso, o texto de Subida II 8 é, na realidade, chave e eixo de nossa investigação.