Tresmontant Misterio de Cristo

Claude Tresmontant — Mistério de Cristo
O MISTÉRIO DE CRISTO
Paulo é chamado para colaborar numa obra empreendida muito antes dele, e que só terminará depois dele, quando a humanidade tiver atingido a idade da plenitude do Cristo e quando Cristo for tudo em todos.

Paulo foi, como ele mesmo diz, co-operário de Deus nesta Obra para a qual Deus o chamou desde o seio de sua mãe.

Em que consiste, então, a economia dessa Obra, cujas etapas são a criação do mundo, a eleição de um povo de santos, a libertação da humanidade e, finalmente, a adoção filial do homem convidado a se tornar co-herdeiro do Filho co-eterno de Deus? Para que o leitor se capacite da significação da existência e do pensamento de Paulo, é necessário esboçar aqui, pelo menos sumariamente, a natureza dessa Obra divina em que Paulo veio a trabalhar em seu tempo — que é o fim dos tempos,

Paulo encontrou o Cristo ressuscitado no caminho de Damasco. Ele mesmo no-lo diz: do Cristo glorioso foi que tudo aprendeu. Este encontro foi o momento decisivo na vida de Paulo. Cumpre, portanto, indicar qual a essência deste mistério do Cristo, chave do mistério da criação de Deus. Para que possamos compreender o sentido do drama no qual Paulo vem, na hora que lhe toca, — embora tardia —, desempenhar um papel eminente, é necessário bosquejar rapidamente a gênese de certas noções bíblicas. Importa tornar a descobrir a inteligência desse mistério, cuja revelação foi encetada pelos nabis de Israel e cuja plenitude foi desvendada na própria Palavra de Deus descida até nós.

A doutrina do mistério do Cristo não é uma “produção” do espírito de Paulo. Paulo não inventou o mistério do Cristo: o mistério do Cristo eterno foi-lhe revelado pelo próprio Cristo. Paulo não é, portanto, um “autor” cuja obra e pensamento possam ser expostos depois de haver sido traçada sua biografia. Mas o contrário é o que acontece, pois é a existência de Paulo que se insere na economia do mistério do Cristo, do qual êle é dispensador e servo. Sem dúvida, Paulo teria sido o primeiro a repudiar com horror o termo “paulinismo” aplicado à doutrina que se depreende das Epístolas. O pensamento de Paulo, conforme Paulo, é o pensamento do Cristo que se revelou a ele e que lhe ensinou qual seja a extensão, a altura e a profundidade do mistério de Deus. Aos Coríntios, Paulo já escrevia o seguinte: Relataram-me a vosso respeito, irmãos, que há discórdias entre vós. Quero dizer isto: uns dizem “eu sou de Paulo!” Outros: “eu som de Cefas!”, “eu do Cristo!” Acaso o Cristo é dividido f Acaso foi Paulo quem foi crucificado por vós? Ou, porventura, foi em nome de Paulo que fôstes batizados? (I Cor., L, 11). Pretender fazer do “paulinismo” algo de diferente do pensamento do Cristo e da Igreja é justamente uma posição não paulina. É sobre o Cristo que Paulo se funda, é no Cristo que ele se enxerta e do Cristo é que ele recebe toda a vida e todo o conhecimento espiritual. A ação de Paulo é a própria ação do Cristo que opera nele. O ser de Paulo é o Cristo: Não sou eu que vivo, mas é o Cristo que vive em mim. (Gal., 2,20) Para mim, viver, é o Cristo!

A fim de permanecer fiel ao espírito de Paulo, vamos começar, pois, por delinear o próprio mistério do Cristo de Deus.

Para tanto, utilizaremos principalmente os escritos do próprio Paulo, pois poderemos assim apresentar a pessoa, a existência e o pensamento de Paulo, bem como sua ação, situados na economia de sua própria visão do mundo: Paulo tal como ele mesmo podia ver-se em seu lugar e em seu tempo, dentro da economia da criação e da salvação.

Com São Paulo, a revelação do mistério da Obra de Deus se aproxima de seu termo. Paulo foi o último a ver o Cristo ressuscitado. A síntese paulina é, por conseguinte, uma das derradeiras etapas da revelação.

Se há um momento privilegiado para estudar uma realidade em evolução, como o é a teologia bíblica, tal instante é precisamente seu ponto final. Não se pode compreender inteiramente a estrutura e o sentido de um fenômeno em gestação senão se reportando ao tempo de sua plenitude, ao alvo colimado desde o princípio. Não se consegue discernir a significação, nem mesmo a anatomia de um tecido embrionário, se não se visar diretamente o organismo já chegado à idade adulta.

Da mesma maneira, a leitura e a elucidação do sentido dos Livros inspirados, da Antiga Aliança, só nos são possíveis de forma total se nos colocarmos sob o prisma do Termo que esses livres têm em vista: o Fim para o qual tendeu constantemente sua expectativa e sua esperança. O sentido dos Livros inspirados, a própria intencionalidade que constitui a essência dos Livros proféticos, tem por objetivo exclusivo o Cristo, que é a Plenitude. E’ precisamente isto que escrevia Paulo a propósito daqueles que, entre os judeus, não alcançavam a inteligência do mistério do Cristo: Até hoje permanece o véu sobre a leitura do Antigo Testamento, — não desvendado; pois, só no Cristo é que foi abolido o véu. Mas, até o presente, todas as vezes que se lê Moisés, um véu permanece colocado sobre o coração deles (a inteligência); cada vez, porém, que alguém se volta para o Senhor, o véu é levantado. Pois o Senhor é o espírito; e onde está o espírito do Senhor, lá também se acha a liberdade (2 Cor. 3,14.)

Depois de termos fornecido, nesta primeira parte, os elementos da síntese da teologia bíblica, feita sob o ângulo de visão de Paulo, tentaremos mostrar, na segunda parte, o papel que desempenhou na crise decisiva vivida então pelo Povo de Deus e a maneira como a experiência concreta, histórica, de Paulo, toda. sua existência enfim, são para ele e para nós fonte preciosa de doutrina teológica.

Qual é a revelação do mistério mantido em segredo durante tempos eternos, mas manifestado agora pelas Escritoras proféticas, segundo a decisão do Deus eterno, e levado ao conhecimento de todas as nações, a fim de conduzi-las à obediência da ? (Rom. 16, 26).

O mistério conservado oculto desde os séculos e as gerações, — mas agora manifestado aos santos, a quem Deus quis dar a conhecer a riqueza da glória de tal mistério entre as nações: o Cristo entre vós, a esperança da glória. (Col. I, 26.) Paulo escreve aos Colossenses, incitando-os a se esforçarem para atingir toda a riqueza da plenitude da inteligência, a fim de conhecer o mistério de Deus, Cristo, no qual estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência (ibid., 2, 2.) Tende cuidado, para que ninguém vos faça presa sua por meio da filosofia ou de vãs sutilezas, conforme a tradição dos homens, conforme os elementos do mundo, e não segundo Cristo; pois nele habita corporal-mente toda a plenitude da divindade, (ibid., 2, 8).