Michel Tardieu — Os Gnósticos
Excertos de sua introdução à obra Nag Hammadi, de R. Kuntzmann e J.-D. Dubois
Conhecer os gnósticos constitui fator obrigatório para o conhecimento do antigo cristianismo. Eles se mantiveram, até o fim do século IV, em torno do Mediterrâneo. E também para além dessa área, à medida que pequenas comunidades conseguiram colocar-se fora do alcance dos grandes centros monásticos e dos ucasses imperiais. Eram cristãos insólitos e estranhos, disseminados quase por toda parte, que durante certo tempo constituíram o pesadelo das autoridades eclesiásticas, antes de ingressar, devidamente selados e catalogados, nas heresiografias, uma espécie de museu dos horrores da Teologia.
O primeiro museu a ser criado foi a coletânea de Justino, em meados do século II. Depois, não deixou mais de se desenvolver, sob a pena de Ireneu, Hipólito, Epifânio e Teodoro. Era ainda atual inclusive na primeira dinastia dos califas do Islã, os umaiadas: nessa época, João de Damasco elaborou uma edição, revista e aumentada, do inventário de textos procedentes do período patrístico. Atualmente, não sabemos sobre essa questão muito mais do que aqueles velhos livros em que os Padres da Igreja assinalaram, por entre caricaturas, os nomes dos corifeus da gnose e alguns textos fragmentários. O primeiro interesse despertado pelas páginas que seguem, portanto, consiste no fato de que nos levam a ler ou reler esses textos sob novo enfoque.
Dez séculos depois da coletânea de João de Damasco, manuscritos gnósticos autênticos começaram a chegar às bibliotecas da Europa, primeiro a Londres e Oxford, mais tarde a Berlim, no fim do século passado. Todas essas descobertas foram frutos do acaso. A mais rica das coleções encontradas, a de Nag Hammadi, permaneceu em território egípcio, na cidade do Cairo. A partir dela, o conhecimento que temos dos gnósticos muda de perspectiva. Ela recoloca em discussão muitos juízos anteriores, desembocando num sistema cultural, a gnose, que propõe ao cristão leitura reflexiva das Escrituras, preço a ser pago para atingir o conhecimento verdadeiro de Deus. Pouco a pouco, surge como grande floresta, cujas múltiplas veredas fazem-nos penetrar num saber cristão em gestação: bíblico, teológico, lírico e imaginário. Uma floresta surpreendente e impressionante, ao mesmo tempo densa e cheia de clareiras, na qual, lado a lado, podemos ver obras de compilação, de circunstância ou de meditação.