Sefer ha-Themuna

SEFER HA-THEMUNA
Sepher ha Themuna, Sepher ha-Themuna, Livro da Imagem, Sefer Ha-Themuna
Cabala
Elias Lipiner
Excertos do livro de Elias Lipiner, “As letras do Alfabeto na criação do mundo”

Sugere o autor do Livro da Imagem que cada ciclo cósmico tem a presidi-lo uma determinada letra do alfabeto hebraico, segundo a felicidade ou desfortuna que devem caracterizá-lo, e conforme a gradação ascendente ou descendente do bem ou do mal de que se tornem merecedoras — por seus atos ou por fatalidade metafísica — as gerações que vivem durante um determinado ciclo.

Exemplificando, aponte-se a lenda multicitada, desde os tempos talmúdicos até as obras cabalísticas da Idade Média, acerca da letra Teth, suspensa nos céus de uma cidade utópica com habitantes desfrutando de vida eterna. A origem da lenda se explica essencialmente pela vantagem desse signo alfabético consistir cm que, ao ser mencionado pela primeira vez na Escritura, ele o foi para iniciar a palavra que designa o adjetivo Tov, ou seja, Bom. Com acrobacias mentais de exegese desta espécie pretendem os cabalistas demonstrar as suas doutrinas, a exemplo de hábeis dialéticos que demonstram suas verdades por absurdos.

O autor do Livro da Imagem afirma, com efeito, que os três primeiros ciclos da existência do mundo seriam presididos ou patrocinados, respectivamente, pelas três letras Daleth, He e Vav, dispostas cronologicamente na sucessão dos tempos de acordo com as posições de adjacência ocupadas por elas na ordem alfabética. O primeiro ciclo, que precedeu o nosso, ocorreu sob o patrocínio da letra Dáleth, que simboliza a graça e a misericórdia. Era uma etapa de felicidade metafísica. O ciclo atual, em que vivemos, encontra-se sob a direção da letra He, símbolo da força, da severidade e do castigo; enquanto o futuro e terceiro ciclo, a ser presidido pela letra Vav, será a manifestação da beleza e da suavidade.

Nos ciclos futuros a serem presididos pelas letras seguintes da ordem alfabética, igualmente suceder-se-ão a felicidade e a desventura, apenas com diferente gradação em relação aos precedentes. Essa gradação do bem e do mal das idades utópicas permitiu conciliar abstrações profundamente metafísicas e sublimações espiritualistas com rudimentos de felicidade terrena comum, efetivamente prevista pelo autor do Livro da Imagem.

Ainda que de origem espiritualista e de autoria de um cabalista presumivelmente asceta, não faltam, pois, na referida obra utópica, elementos econômicos e vantagens concretas. A vigência de uma Lei composta de preceitos exclusivamente permissivos atribui ao reino da utopia aspectos de felicidade tipicamente terrena, mencionando inclusive saborosas iguarias e lindas mulheres.

Todavia, abstraindo os olhos dos referidos aspectos materialistas e acessórios, remanesce no reino da utopia uma existência humana semelhante à dos seres divinos da mitologia, com a completa eliminação do pecado. A humanidade representa uma só família com igualdade para tudo e para todos, produzindo a terra, natural e abundantemente, árvores frutíferas e cereais de espécies perfeitas. A reprodução do homem opera-se por processos mais sublimes e imp’ulsos mais puros do que os atualmente conhecidos, resultando dessa proliferação sutil seres humanos de constituição fisiológica, psíquica e estética mais perfeita, dotados de vida eterna.

A versão judaica da teoria sobre os ciclos sabáticos exposta no Livro da Imagem, apoiada numa terminologia tomada à Bíblia, contém em si as formulações utopistas do judaísmo medieval. Mediante o emprego das sutilezas exegéticas a que acima se aludiu, o autor venceu o receio de afastar-se dos preceitos do texto canonizado e conseguiu expor a sua doutrina utópica, derivando-a surpreendentemente da própria Lei tradicional.

Para isto idealizou e preestabeleceu a existência de uma Lei celeste, insubstituível, absoluta e eterna (Toráh Quedumáh), cujo texto estaria composto por letras espirituais, geometricamente indefinidas, e não distribuídas em vocábulos. De tal premissa o autor deduziu que desse arquétipo metafísico provinham as tábuas da Lei terrena outorgada no monte Sinai, e assim suas letras componentes, que passam a constituir um reflexo apenas do absoluto, construíam um sentido dentro da variedade de tantos outros possíveis.

Um aspecto relativo daquela Lei absoluta pode revelar-se, pois, com exclusividade, em cada ciclo sabático, ocasião em que passa a predominar uma Lei própria, com o texto composto de letras já definidas geometricamente, inteligível para os homens que então vivem na terra e a eles aplicável.

Atualmente, no ciclo em que vivemos, vige a Lei do Sinai na sua interpretação literal, com seus preceitos severamente proibitivos, suas fábulas sobre o pecado e respectivo castigo, com suas restrições e proibições amargurando os tempos do homem sobre a terra, mantendo-o angustiado e aflito. Porém — afirma o autor — encerrado o atual ciclo sabático, a Lei Eterna revelar-se-á aos homens no seu aspecto suave e benevolente, reagrupando-se as suas letras espirituais para compor preceitos exclusivamente permissivos e fábulas versando a virtude e a pureza, a fim de que a vida do homem se torne reflexo fiel do novo texto. Tal interpretação antonímica do texto canonizado, através da miraculosa operação com suas letras, abriu o caminho para as regiões longínquas da ansiada utopia.

Um detalhe impressionante, que se destaca pelo seu encanto e originalidade neste emaranhado especulativo da utopia, é a lenda acerca da letra inexistente ou desaparecida, ou seja, da vigésima terceira letra, já que o alfabeto hebraico contém atualmente vinte e dois signos fundamentais apenas.

Com efeito, o autor anônimo presume que a composição do texto da Lei regulando nosso ciclo atual ficou prejudicada, resultando em rigor, pecado e castigo, pela falta de uma letra que se ocultou. Augura, porém, que no ciclo sabático futuro o signo em eclipse inevitavelmente se apresentará, para ser inscrito no alfabeto, a fim de permitir a composição de um texto de Lei perfeito e utópico, de que a existência humana será um fiel reflexo.

Na teoria dos ciclos sabáticos, a sucessão do tempo não se desenvolve em movimento retilíneo, mas sim distribuída em ciclos de giro circular, semelhante a uma roda que se move em torno de um eixo invisível, descrevendo circunferências variadas. À semelhança mesmo da roda da fortuna, que ostenta variadas alternativas — de sorte ou de infortúnio — à medida que vai girando, ou a cada volta nova. É a idéia do círculo geométrico, transferida das ciências humanas, sugerindo o eterno retorno da História e o reencontro periódico de épocas.

Insinua-se que a força destinada a transmitir movimento a esse gigantesco maquinismo metafísico girante, que deixa à sua passagem páginas de História, seria o comportamento do homem sobre a terra, sorteando-se as gerações com ciclos sabáticos felizes ou desafortunados, na medida em que seus atos o determinam. É o panorama social refletindo o elemento ético.

Evidentemente, a ficção utópica dos místicos judeus medievais não poderia apresentar as características sociológicas de que se reveste modernamente o pensamento utópico dos reformadores socialistas. Estes partem de princípios de análise científica do fenômeno social, desconhecidos na Idade Média. Contudo, não obstante as suas formas místicas, abstratas e ingênuas — justificadas pela conjuntura histórica em que se manifestaram — deve-se ainda hoje atribuir àquela visão utópica a importância e o respeito devidos a todos os movimentos precursores.