I Torah e Qabbalah
Toda Luz que Deus deu a Israel se oculta na Torá (Lei, Doutrina ou Direção); esta é a cristalização e a permanência misteriosa da Revelação sinaítica. No Sinai, a Presença real de Hokhmah, a “Sabedoria” divina, apareceu ao “Povo eleito”: «Israel penetrou o Mistério de Hokkmah», diz o Zohar, e «os israelitas viram sobre o Monte Sinai a Glória (ou Presença real) de seu Rei (divino), face a face…».
Deve-se distinguir entre a descida ou revelação das primeiras e das segundas Tábuas da Torá. O Zohar ensina que as primeiras Tábuas emanavam da Árvore da Vida, mas que Israel, adorando o bezerro de ouro, «não foi julgada digna dela beneficiar». Também Moisés, seguindo a ordem divina, deu ao povo outras Tábuas «que estavam do lado da Árvore do Bem e do Mal». Com efeito, a Lei das segundas Tábuas é formada de mandamentos positivos e preceitos negativos: “isto é permitido, isto é interdito” —; daquilo que é permitido decorre a Vida, daquilo que é proibido, a morte. As primeiras Tábuas, diz a Cabala, eram a Luz e a Doutrina do Messias, o lançamento da Liberação universal, a Fonte da Vida eterna sobre a terra. As segundas Tábuas, representavam a manifestação indireta ou “partida” desta Luz; Hokhmah, a Sabedoria pura e redentora, não estava mais imediatamente acessível aí, mas oculta atrás das “cortinas” de Binah, a “Inteligência” cósmica de Deus.
A manifestação da “Torá incriada” mudou, mas não sua Essência, Hokhmah. A Presença real da Sabedoria divina habita na segunda manifestação, como na primeira, com a diferença que, para a segunda o homem foi impedido pela Binah «de avançar a mão, tomar da Árvore da Vida, dela comer e de viver eternamente». Para aceder a Hokhmah, ele deve «cultivar a terra» de sua alma, pela distinção do bem e do mal, e pela prática da Lei divina; e ele deve buscar com muito zelo a Verdade oculta atrás das letras da Escritura. (neste sentido é notável a análise de Paul Nothomb)
Esta penetração espiritual da Doutrina escrita (Torah schebikhtab) é facilitada pela Doutrina oral (Torah schebal peh), a última sendo a aplicação da primeira. As duas Doutrinas representando os dois aspectos inseparáveis — e “simultâneos” — da Revelação mosaica. A Torah escrita ou “letra” estática serve de ponto de partida imutável para a contemplação que não poderia se operar sem a interpretação tradicional da “letra gravada na pedra”; esta interpretação, a Doutrina oral, é “como um martelo que quebra a pedra”, e dela libera as “faíscas” espirituais de Hokhmah que aí habita.
A revelação simultânea da Torah escrita e da Torah oral decorre do versículo escriturário (Ex XX, 18): E todo povo viu os trovões e as chamas e o som da trompeta e a montanha fumegante”. O Zohar comenta este versículo dizendo que as Palavras divinas se imprimem nas trevas da nuvem que envelopava a Presença real de Deus, de sorte que Israel ao mesmo tempo, as ouvia — como Doutrina oral — e as via — com Doutrina escrita; e precisa que cada Palavra se dividia em setenta sons — revelando as setenta interpretação fundamentais da Escritura — que estes sons aparecem aos olhos de Israel como tantas luzes faiscantes; enfim, que os preceitos do Decálogo constituíam a síntese de todos os mandamentos, e que no momento de sua revelação, Israel penetrou todos os Mistérios guardados na Escritura.