Origenes Carne

Orígenes — Tratado da Oração

XVII O espírito e a carne
1 Não é de espantar se todos os que recebem os corpos que, por assim dizer, produzem sombra, não recebem sombra semelhante, ou se a alguns não se dá sombra alguma. Isto, aliás, ocorre com os corpos físicos, como observam os que estudam questões relativas a relógios de sol e, em particular, a relação das sombras com o respectivo corpo luminoso. Com efeito, para alguns observadores, a coluna não dá sombra, por um certo tempo. Para outros, por assim dizer, ela projeta uma sombra curta; para alguns, uma sombra mais longa, em tempos diversos.

Nada, pois, de espantar, se, conforme os desígnios inefáveis e místicos e secretos daquele que distribui os bens excelentes em harmonia com os que os recebem e com os tempos em que os recebem, nenhuma sombra segue, às vezes, tais bens. Ou, se outras vezes, alguns e não todos os dons se acompanham de sombras menores, relativamente a maiores de outros.

A quem busca os raios do sol, é indiferente se há ou não sombra, pois consegue o mais importante, a luz do sol, embora sem sombra ou com sombra mais curta ou mais comprida. Assim, enquanto não temos os bens espirituais e somos iluminados por Deus na posse completa desses bens verdadeiros, não devemos preocupar-nos dessa coisa indiferente que é a sombra.

Todas as coisas materiais e corporais, quaisquer que sejam, se reduzem a uma sombra passageira e frágil e não podem ser comparadas aos dons salutares e santos de Deus, Senhor do universo.

Como se poderiam comparar as riquezas materiais com aquelas que nos tornam “ricos em toda palavra e em toda sabedoria” ? (1 Cor 1,5).

E quem, senão um louco, compararia a saúde da carne e do osso com a do espírito, com a força da alma e com a reta coordenação dos pensamentos? Tudo isso, todos os sofrimentos corporais, se regulados pela palavra de Deus, não são, em verdade, senão arranhões sem importância e até menos do que isso.

Quem entendeu o que é a beleza da esposa amada pelo esposo, que é o Filho de Deus, isto é, a beleza da alma que floresce com uma beleza superior à do céu e do universo, se envergonhará de dar esse mesmo nome à beleza corporal de uma mulher, de uma criança, de um homem. A carne não poder ser beleza de verdade, pois toda ela é fealdade. Toda carne é como a erva, e a sua glória, que se manifesta na pretensa beleza das mulheres e das criancinhas, é comparada a uma flor, segundo a palavra do profeta: “Toda carne é como a erva, e toda a sua glória é como a flor do campo. A flor murcha, a erva seca, mas a palavra do nosso Deus permanece para sempre” (Is 40,6-8).

Igualmente, quem chamará de nobreza a que vem por nascimento, segundo os homens, depois que se conhece a nobreza dos filhos de Deus?

O espírito que contemplou o reino indestrutível do Cristo (cf. Hb 12,28), como poderá deixar de ter como indigno de consideração todo reino da terra?

E quem tiver visto o exército dos anjos e dos chefes das forças do Senhor — os arcanjos, os tronos e dominações, os principados e potências supracelestes — , (nos limites permitidos a um espírito ainda ligado ao corpo) quando vier a compreender que pode obter do Pai as mesmas honras, acaso não desprezará ele os bens, fracas sombras, admirados pelos insensatos, vendo-os como bens obscuros e insignificantes diante daqueles? Ainda quando lhe oferecessem todas as coisas, não desprezaria ele tudo, para não perder os verdadeiros principados e as dignidades divinas?

Devemos, pois, pedir e pedir para obter aqueles que são os bens principais, verdadeiramente grandes e celestes. Quanto aos bens que acompanham como sombra os bens principais, deixemo-los à livre vontade de Deus. Pois ele “sabe o que nos é necessário (para o nosso corpo mortal), antes que o pecamos” (Mt 6,8).