Ordem de Cristo – Cavalaria do Mar

Antonio Carlos Carvalho, Excertos de O TRIÂNGULO MÍSTICO PORTUGUÊS

Nem sempre as relações entre os Cavaleiros Templários e o rei foram das melhores: tiveram problemas com D. Sancho I e com D. Afonso III. No entanto, com D. Dinis, as coisas passaram-se de modo bem diferente (e quanto mais estudamos o reinado deste rei-poeta mais nos convencemos de que a História de Portugal teve nessa época (1261-1325) um dos seus pontos mais altos).

Quando o Papa Clemente V abriu o processo a nível europeu contra a Ordem dos Templários, D. Dinis recebeu, em 1308, a bula papal, enquanto, simultaneamente, o bispo de Lisboa e outros prelados eram encarregados de organizar um inquérito sobre a vida dos Templários.

D. Dinis tomou uma atitude prudente: não disse que sim nem que não ao papa; aparentemente, decidiu cumprir as prescrições da bula papal, mandando instaurar um processo judicial contra os cavaleiros, mas dando-lhes o tempo necessário para se poderem refugiar (no estrangeiro? — ou entre nós, em lugares ou situações em que estivessem em segurança?—eis a dúvida que ainda hoje se põe — mas está tudo por investigar…).

Bens dos cavaleiros, como os castelos de Pombal, Soure, Ega e Redinha, regressaram ao senhorio da coroa. Clérigos poderosos e outras ordens monásticas apresentaram reclamações, com o pretexto de pretensos direitos sobre esses bens, mas o rei suspendeu essas reclamações e ordenou a penhora das propriedades em litígio, com fundamento na ausência dos mestres e cavaleiros.

E imediatamente entrou em contacto com Fernando VII de Castela e Jaime II de Aragão, seus parentes, e todos, em conjunto, procuraram demonstrar a inocência dos Templários, pelo menos dos cavaleiros existentes para cá dos Pireneus. Essa inocência seria provada em 1310, no concilio local de Salamanca e, em consequência, dois anos depois, outra bula papal confirmará a esses três reis a posse inteira dos bens da Ordem. Deste modo, quando, em 1312, a Ordem foi suprimida e entregues os seus bens aos Hospitalários, os reinos da Península Ibérica não foram abrangidos por esta última determinação.

Mas os objetivos de D. Dinis e de D. Isabel (cuja influência foi certamente decisiva em todo este caso) visavam mais longe: «camuflar» a missão profunda da Ordem dos Templários — a construção da Jerusalém terrestre, do Reino de Deus sobre a Terra — sob a capa de uma nova Ordem religiosa — a de Cristo.

Assim, em Março de 1319 (passaram agora seiscentos e sessenta anos sobre essa data), a bula «Ad ea exquibus», de João XXII, cria a Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo, logo seguida de outra bula que lhe faz doação de todos os bens que pertenceram à Ordem do Templo. Estava assegurada a continuação do «espírito» da obra a realizar neste final da Idade Média — que não foi uma «longa noite de mil anos» nem uma «idade das trevas», como alguns «historiadores» teimam em chamar-lhe, mas sim (pelo menos cm Portugal) uma espantosa época de grandes realizações, de preparação material e espiritual de um povo para o seu destino. Cristãos, judeus e muçulmanos vão colaborar nessa obra, com a Ordem de Cristo a indicar o rumo certo.

E assim como o Novo Testamento, a nova Lei, vem completar, sem a destruir, a antiga Lei do Velho Testamento, também a Ordem de Cristo vai completar a obra apenas começada da Ordem dos Templários. Primeiro o Pai (a guarda do Templo na Palestina e na Europa), depois o Filho (Cristo, a Ordem dos cavaleiros de Cristo, com a cruz vermelha por símbolo); mais tarde ficará o Espírito Santo e o seu culto, presente nas terras e nos homens a que os portugueses (navegadores ou emigrantes) chegaram… À imagem e semelhança da Trindade, do Triângulo supremo.

A nova Ordem terá a sua sede inicial em Castro Marim e o seu primeiro Mestre será Gil Martins, cavaleiro de Aviz. Mas, em 1372, já no reinado de D. Fernando, a sede da Ordem muda-se para Tomar, onde permanecerá durante todo o seu período ativo.

De acordo com as indicações papais, as suas constituições são confirmadas pelo abade de Alcobaça — isto é, mantém-se com a Ordem de Cristo a ligação espiritual já existente entre as Ordens do Templo e de Cister.

O futuro rei D. João I será confiado por seu pai, D. Pedro I, ao Mestre da Ordem de Cristo, Nuno Rodrigues. E, mais tarde, a Ordem não deixará de tomar o partido do Mestre de Aviz contra Leonor Teles e a favor da independência de Portugal. No plano militar, a Ordem estará presente nas mais importantes batalhas, come a de Aljubarrota e a conquista de Ceuta.

Mas, entretanto, um dos filhos de D. João I, o Infante D. Henrique, assume em 1417 o comando dos cavaleiros de Cristo. Ele será o oitavo Mestre da Ordem (cá temos novamente o numero oito, número de Cristo, especialmente importante na arquitetura dos Templários e na dos templos cristãos em geral — até os baptistérios são octogonais, porque o neófito é baptizado em Cristo, revestido de Cristo), mas sem nunca usar esse título oficialmente; prefere aparecer como «regedor» ou «governador» da Ordem — «Eu, o Infante D. Henrique, regedor e governador da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo», como se pode ler nos seus documentos. É que, como Mestre, D. Henrique teria de fazer votos de pobreza (e não poderia, portanto, utilizar os seus bens e os bens da Ordem, como irá fazer) e de obediência a Alcobaça, o que também poderia vir a estorvar a sua tarefa.

Começa por reunir o capítulo da Ordem em Lisboa e reforma a Ordem, tornando-a autônoma; é igualmente determinado que os seus bens poderão vir a ser utilizados pelo seu regedor, desde que o sejam ao serviço do rei, como vai acontecer.

Depois, já em Tomar, dá início ao chamado Convento de Cristo, fazendo construir «paços» e instalações da Ordem no recinto do burgo acastelado, permanecendo a charola templária como ponto de partida (símbolo de continuidade) das novas construções.

Porquê tudo isto?

Talvez porque, ao morrer, D. Filipa de Lencastre, a mãe da «ínclita Geração», tenha confiado uma missão particular a cada um dos seus filhos mais velhos: «a um gesto da mãe, os infantes ajoelharam; e então ela, erguendo-se com um ar de morta, deu a D. Duarte uma espada, recomendando-lhe que fosse um rei justo; a D. Pedro outra, exortando-o à honra e à cavalaria, em defesa das donas e donzelas; a D. Henrique outra, lembrando-lhe o amor da fidalguia. E deitou a todos a sua bênção», Mas não termina aqui esta verdadeira cerimônia iniciática, na qual encontramos ecos de cerimônias semelhantes incluídas nos romances de cavalaria. Conforme nos conta Oliveira Martins, em «Os Filhos de D. João I», «então a rainha, tirando do seio um relicário de ouro, abriu-o e lá de dentro extraiu uma esquírola de madeira negra, religiosamente dobrada em seda. Era um pedaço do santo lenho em que fora crucificado Cristo. Com as suas mãos cor de cera levou-o aos lábios ardentes de febre e beijou-o; depois, partiu-o em quatro e ao marido e aos filhos deu a cada qual o seu fragmento».

Deste modo, D. Henrique, o terceiro filho, recebe por via feminina a incumbência de formar uma nova nobreza no amor e no exemplo de Cristo. É o que ele vai fazer, criando a nobreza do mar1.

(Porque o nobre, ao contrário do que hoje se pensa, é acima de tudo um servidor do Pais e não um gozador de privilégios, como lembrava Paiva Couceiro: «Vedes esse que, o primeiro no perigo e no sacrifício, recebe e dá golpes sem temor nem poupança cm defesa da nossa Pátria, a escorrer sangue do corpo e da alma no aceso da peleja? Aí está o Nobre»).

D. Henrique será sempre fiel a essa missão. E a Ordem de Cristo, a partir da sua sede em Tomar, sob o seu governo, Vai desempenhar o papel para o qual fora criada: a grande aventura dos Descobrimentos, cujas naus levarão nas velas o símbolo da Ordem: uma cruz vermelha, com outra cruz, branca, aberta no seu interior. O vermelho, cor do Espírito Santo, e o branco, cor da pureza da Virgem Maria, Mãe de Deus, a quem D. Henrique dedicava uma especial devoção — entre as dezessete igrejas que mandará construir, as de Ceuta, Belém, Sagres, Alcácer, Madeira e Santa Maria serão dedicadas à Virgem. Por outro lado, manda que «cada semana, ao sábado, por sempre em minha vida e depois da minha morte, dizer uma missa de Santa Maria, e a comemoração seja do Santo Espírito». Vemos, assim, como o Infante queria ter associados consigo, na vida c na morte, a «minha Senhora Santa Maria» e o Espírito Santo (sempre presentes em todo o Triângulo Místico, o assunto deste livrinho e de que nunca nos afastamos).

Sabemos pelos cronistas que D. Henrique usava cilício («E achei-o cingido por cilício áspero de cerdas de cavalo»). Talvez não seja especular de mais se relacionarmos essa corda com a do hábito franciscano que a Rainha Santa levará para o túmulo, com a corda presente nos painéis de Nuno Gonçalves e com a corda cingida, séculos depois, pelos três pastores de Fátima… Lembramos que a corda é um símbolo de ascensão, como a árvore e a escada.

Antônio Telmo, na sua «História Secreta de Portugal», sublinha que «no inquérito contra os Templários, um tal Frei João da Ordem de São Bento declarou aos inquisidores que na altura da iniciação o candidato recebia uma corda que passava a usar dia e noite sobre a camisa de dormir e em todos os ritos cm que tomava parte. Por outro lado, dois cordões, diferentes na espessura, faziam parte das vestes secretas. Um deles era usado pelo neófito, o outro pelo iniciado. Durante o processo contra os Templários, as testemunhas mencionam estes cordões em conexão com as camisas que eram usadas por todos os adeptos. Nas cantigas d’amigo aparece constantemente o tema da camisa e o tema da corda, muitas vezes associados (…) Esta cinta de corda era recebida pelo cavaleiro durante o rito de iniciação, depois de ter sido posta em contacto com o ídolo, a quem os Templários teriam prestado culto, de modo a impregnar-se de determinada influência. A dar-se crédito àqueles que testemunharam no processo, essa teria sido a sua aplicação. Estamos de novo perante a imagem da corda como de algo que ata e encadeia os iniciados entre si e a um poder superior. Fácil se torna conjecturar que espécie de Amor procurava o trovador galego «entre os frades templários». Pensamos ser no sentido acima referido que se deve explicar a predominância da corda no «manuelino». Até hoje ninguém se lembrou de ligar ao mesmo significado a corda enrolada que está por terra aos pés da figura central do painel de Nuno Gonçalves».

De fato, a corda enrolada, formando nós, tem um simbolismo iniciático ainda hoje presente na Maçonaria, representando a cadeia de união entre todos os Irmãos. Então, o cilício aparece-nos como sendo muito mais do que um meio de mortificação para os místicos — seria num plano superior, o da iniciação, que se poderia entender o verdadeiro significado da corda enrolada no centro e aos pés das figuras dos painéis de Nuno Gonçalves. E se a interpretação de Almada Negreiros estiver certa, estes painéis fariam parte de um todo de quinze tábuas tendo a tábua «Ecce Homo» como centro, que deveriam figurar na Capela do Fundador no Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha, como um altar erguido em honra dos mártires da Nação, os que se sacrificaram para que Portugal existisse. Entre eles, D. Henrique e os cavaleiros da Ordem do mesmo Cristo que figura no centro dessa composição.

Pois é esse mesmo Infante D. Henrique que terá o cuidado de confiar, de acordo com o rei e o Papa, as terras descobertas à direção espiritual da sua Ordem de Cristo: «no espiritual tudo cedeu à Ordem de Cristo». E o Papa «fez menção que todas as ilhas descobertas no mar oceano eram do Senhor Infante e da Ordem de Cristo».

Estas atitudes encontram sentido quando integradas na «Mística dos Descobrimentos», uma projeção natural do Triângulo Místico na História de Portugal e do Mundo.


  1. João de Barros conta que D. Henrique «foi muito amador da criado dos fidalgos por os doutrinar em bons costumes: e tanto zelou esta criação que se pode dizer sua casa ser uma escola de virtuosa nobreza onde maior parte da fidalguia deste reino se criou».