Consciência de Existir, Consciência Existencial
A Consciência de Existir
Modelado “leveza fora do pesadume”, quer dizer imortal por natureza, o Homem ainda não está acabado. Ele só o será verdadeiramente quando completado de sua “metade faltante”, a Mulher. Mas antes deverá superar outras etapas de sua formação, que paradoxalmente o relato do jardim do Éden, que não é cronológico, nos detalha, enquanto o relato dos seis dias insista na criação instantânea e simultânea do Homem e da Mulher: “Macho e fêmea os criou” (1,27).
O relato do jardim do Éden não contradiz esta igualdade ontológica entre as duas metades do Ser humano, e não autoriza qualquer conclusão misógina sobre uma anterioridade qualquer ou primazia masculina. A Mulher constitui a última “fase” do Homem, mas aparece também como a única criatura originária do jardim. A única, pois as plantas e os animais que aí estavam para o prazer do Homem, como o Homem ele mesmo, aí foram transportados, depois de tirados “fora do pesadume”. A Mulher aí veio à existência. E mesmo exilada do jardim, dela guardará algo. Nossos espíritos ainda hoje em dia, independentemente da atração sexual, não dão à ideia de felicidade a face de uma mulher? Vide as propagandas publicitárias, as capas de revistas.
“Deus soprou em suas narinas um sopro de vida, e o Homem se tornou um ser vivo”. Assim termina o versículo que começa pela revelação surpreendente que o Homem foi formado (segundo nossa tradução) “leveza fora do pesadume” (2,7). A expressão traduzida por “ser vivo” (nefesh haya) é aquela utilizada no primeiro relato para designar os animais (1,21) (v. nefes).
No relato do jardim do Éden, a formação do Homem antes mesmo de ser “completado” pela Mulher comporta três etapas, ou estágios, pois trata-se de uma progressão para o alto:
- O homem é formado leveza fora do pesadume
- Deus lhe insufla um “sopro de vida”
- O Homem se torna um “ser vivo”
Logo diferentemente dos animais, o Homem é formado “leveza” (mais fraco que eles fisicamente sem dúvida, embora imortal) e por outro lado gratificado de um “sopro divino” antes de se tornar um “ser vivo”.
Elemento psíquico que distingue o Homem dos animais, este “sopro de vida” (nishmat hayim) nunca mais é citado na Bíblia, depois desta única menção. Embora pouco modificada em “sopro de espírito de vida”, a expressão reaparece no entanto uma vez: no relato do dilúvio, onde “tudo que tinha um sopro de espírito de vida nas narinas, de todos aqueles que estavam sobre a terra seca (Gn 7,22) designa os homens permanecendo na terra, enquanto Noé estava na arca. Pode-se pensar que esta lembrança neste lugar sublinha a importância de Noé como único sobrevivente (com seus companheiros) da humanidade criada na pessoa do primeiro Homem, cuja particularidade era o “sopro de vida” insuflado por Deus. Mas a parte estas duas menções, não é questão em nenhuma outra parte da Bíblia deste nishmat hayim… De que se trata?
Pode-se assimilar esta nishmat hayim do relato da formação, e mesmo esta nishmat rouah hayim do relato do dilúvio aos dois rouah hayim que se encontram também na Bíblia, precisamente no relato do dilúvio (Gen 6,17; 7,15)? Mas estas duas menções do rouah hayim (espírito de vida, literalmente: vento de vida) se relacionam claramente segundo o contexto a “toda carne”, tanto animais quanto homens. De maneira mais geral a princípio, a palavra “rouah” (ruah) é muito mais frequente na Bíblia que a palavra “neshama”. Designa não somente o vento ou a respiração no sentido material, mas o espírito no sentido mais amplo, o espírito de Deus e também o espírito do Homem.
Então o que quer dizer a palavra “neshama” (da qual o “estado construído” é “nishmat”) quando está só? É traduzida seja por “sopro”, seja por “alma”, seja por “respiração”. Sobre as vinte duas ocorrências desta palavra na Bíblia, além das duas citadas, há seis onde é precedida da palavra “kol” (todo). “Kol neshama”. Sobre essas seis menções, cinco designam claramente segundo o contexto “toda a população”, ou se se prefere todos os seres humanos, que devem ser exterminados quando uma cidade, quando da conquista da Terra Prometida, foi “interditada”. Esta prática cruel que sacrifica inocentes, embora em bem menos número que o dilúvio — que, diga-se de passagem, escandaliza pouco os humanistas — era corrente nas guerras da época. Remetemos ao que diremos mais adiante destes “castigos divinos”, incompreensíveis. Nossas bíblias traduzem este kol neshama seja por “tudo que respira” (Segond), seja por “tudo que é vivo” (Jerusalém), o que é equívoco, pois pode-se pensar que inclui os animais. Ora o contexto os exclui. Deve-se portanto traduzir “todos os seres humanos” e neshama neste caso por “homem” enquanto caracterizado por este atributo que lhe é próprio, neshama. Da mesma maneira na sexta menção de kol neshama que figura no último salmo: “Que todos os homens louvem o Eterno” (Sl 150,6)
Continuamos nossa contagem. Há em seguida nove menções da nishmat de Deus, que não se pode traduzir por “respiração” ou por “alma”. Segundo o contexto trata-se seja da cólera de Deus, seja de sua inspiração. Resta sete menções se relacionando à nishmat do homem, que nossas bíblias se apressam em traduzir “literalmente” — o que não ousam para a nishmat de Deus.
Exemplos: o filho da viúva de Serepta, onde vai o profeta Elias (1R 17,17) cai doente “e sua doença foi tão violenta que nele não restava mais respiração” (Segond). “E sua doença foi tão violenta que enfim ele expirou” (Jerusalém).
Assustado por uma visão, o profeta Daniel (Daniel 10,17) declara: “Agora minhas forças me faltam, e não tenho mais sopro” (Segond). “O sopro o abandonou” (Jerusalém).
Jó suspira (Jó 27,3): “Por quanto tempo tenha minha respiração” (Segond). “Enquanto um resto de vida me anime” (Jerusalém).
O profeta Isaías adverte (Is 2,22): “Cesseis de vos confiar no homem, nas narinas dos quais só há um sopro, pois de valor é ele? ” (Segond). “Cessais de vos confiar no homem que só tem um sopro nas narinas. A quanto estimá-lo? ” (Jerusalém).
Isaías louva Deus (Is 42,5) “quem entendeu a terra e suas produções, que deu a respiração àqueles que a povoam” (Segond). “Quem deu alento ao povo que o habita” (Jerusalém).
Deus, pela boca do profeta Isaías (Is 57,16) exclama: “Não posso guardar uma eterna cólera quando diante de mim tombam em derrota as almas que fiz (Segond). “Não persistirei em me irritar, pois diante de mim sucumbem as almas que fiz” (Jerusalém).
A sétima menção da nishmat do homem (Jós 26,4) é traduzida por Segond e a Bíblia de Jerusalém, não por “sopro”, “respiração” ou “alma”, mas por “espírito”.
Estas traduções “literais” parecem plausíveis, mas há uma oração tradicional, provavelmente muito antiga, que denuncia sua insuficiência. Cada manhã em se despertando, o judeu piedoso deve recitar as “bendições da aurora” que assim começam: “Te agradeço, Deus vivo e subsistente, de me ter proporcionado minha neshama na tua bondade” (Siddour do rito sepharade). Vê-se claramente aqui que não é a alma, o sopro, nem a respiração que Deus proporciona ao homem em seu despertar, mas sua consciência. E se se substitui nos exemplos bíblicos citados acima, às palavras “alma”, “sopro”, ou “respiração”, esta palavra “consciência”, apercebe-se que ela convém perfeitamente e aprofunda consideravelmente o alcance do que é aí dito.
Se neshama portanto quer dizer “consciência” e hayim como se sabe quer dizer “vida”, a nishmat hayim que nos ocupa quer dizer “consciência de vida”, ou mais corretamente em francês “consciência de existir”.
Ninguém parece se dar conta dito até aqui. Esta misteriosa nishmat hayim que Deus insufla ao “pó” que é o homem, a fim de disto fazer um ser vivo, é a consciência de existir, dito de outra maneira uma certa distância face à Criação e dele mesmo, uma faculdade de abstração, de inteligência, de julgamento, de imaginação — condições de sua liberdade.
Certamente, a liberdade não vai jamais sem consciência! Mas a maioria das pessoas, dizendo isso, pensará na consciência moral. Ora eu creio, e vou tentar demonstrar, que no relato do jardim do Éden, e no coração do drama que vai se aí desempenhado, não se trata a princípio, e mesmo não se trata de todo, contrariamente à opinião tão difundida, de consciência moral.