Lucas explica tudo isso em uma parábola que deveríamos denominar, “do Administrado de Injustiça”. Por não haver sido atendida a importante vertente “oculta” pela qual discorre este relato, não gozou de muita fortuna exegética ao lango dos séculos. Talvez convenha prestar-lhe agora atenção.
Contrariamente ao que parece habitual em muitas parábolas, não é neste caso “o senhor” do relato um representante do Reino dos Céus. Nem sequer é um “Adão, espírito que dá vida”, um bem-aventurado “pobre de espírito”, senão um “Adão, alma vivente”, quer dizer, um homem “rico” (de psyche), bem longe ainda dessa “kenosis” ou humildade santa que serve para que se abra em propriedade o Reino de Deus.
Quanto ao “administrador” de tal personagem terreno devemos entender que é figura da razão reflexiva, quer dizer, dessa “reflexão luminosa” da que falam alguns autores antigos. Segundo o relato do Gênesis, foi esta “reflexão”, significada por Eva, a qual roubou a Adão de seu “profundo sono” semelhante ao da vida animal (sumida em “nefes”), para converte-lhe em um buscador permanente, muitas vezes apesar de si mesmo, desses caminhos do bem e do mal que segundo o evangelho levam à perdição ou a vida (Mt 6, 13-14). Este último, a Vida, é a morada prometida ao homem, pois graças ao conhecimento obtido segundo o verdadeiro sentido do fruto da árvore, quando se distingue e pratica o bom caminho é possível converter em realidade aquilo que afirmou YHWH-Deus no Jardim do Éden: “O homem veio a ser como um de nós” (Gen, 3,22).
Nos versículos 1-4 da parábola do “Mordomo Infiel”, diz o relato que o administrador foi acusado (ou se auto-acusou), de “malbaratar a fazenda” — a vida e as “sedutoras” riquezas — do Senhor e teve então para si a evidência do mais que certo término de sua administração. Compreendeu que algo deveria fazer para conseguir um alojamento inesgotável nas moradas eternas. “Cavar” — se dizia — (quer dizer, aprofundar no conhecimento de Deus), “não poderia” e “pedir1 (praticar a oração) me dá vergonha”.
Nos versículos 5-8, decide então o administrador perdoar na medida que o era possível aos devedores de seu senhor2 , e esta determinação o foi imputada ao administrador de injustiça3 , como uma obra “prudente”4 . Este louvor esta acertado posto que a prudência é uma virtude principal que consiste em discernir entre o bem e o mal para seguir ou fugir dele. Segundo disse o senhor, esta prudência é própria dos “filhos deste mundo”. No entanto, “os filhos da luz”, quer dizer, os filhos espirituais de quem disse: “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8,12), não necessitam praticar a virtude da prudência, porque no Reino da Vida onde têm sua morada, ninguém necessita conhecer o fruo de nenhuma árvore do Éden, para viver eternamente.
Nos versículos 9-10, é Jesus quem rubrica o relato aportando o ensinamento prático que deve depreender-se da parábola. “Fazei-vos amigos” — diz — (comportai-vos prudentemente) “com as riquezas de injustiça” para que quando (estas) faltem (no mundo luz), sejais recebidos nas moradas eternas. Não sejais injustos, senão fiéis, no pouco — no mundo — pois isso vale como signo de que sois fiéis e justos no muito — no céu”.
Nos versículos 11-12, “Se não fostes fiéis nas riquezas da injustiça — os tesouros da terra — quem os confiará as verdadeiras? — o tesouro celestial —. E se não fostes fiéis com o alheio — as riquezas “agregadas” por sedução, incorporadas falsamente ao eu — quem os dará o vosso? — as riquezas verdadeiras que jazem ocultas no tesouro da luz, o hal habita em vós, pois isso é o que sois —.”
O homem fiel no pouco, no mundo transitório, já não serve a dois senhores, pois exerce desde um só cavalo e tende a tirar com um só arco, ainda que use o único que dispõe o homem “rico de injustiça”, o filho psíquico de Adão; mas se atua conforme a prudência verá esse homem “rico” a dissolução paulatina de tais riquezas de injustiça das quais em sua ignorância se reveste por apego. Assim é como acederá à pura “desnudez” em espírito, própria do filho “pobre” do homem. Livre então dos estéreis “abrolhos”, viverá atento à presença constante em sua consciência do único tesouro verdadeiro, o que leva a residir nas moradas eternas. Daí a proclama geral do salmista, quando sua boca vai dizer sabedoria sem distinção: “Escutai, habitantes todos da terra, filhos de Adão — ricos — assim como filhos de homem — pobres —.” (Sl 49,2-3)
A sabedoria consiste em que o “rico” perdoe as dívidas, segundo a Oração (Pai Nosso), sem reparar na “pobreza” que a ele lhe advém. Esta é uma forma verdadeira de “orar” e também de “pedir”, pois todo aquele que busca morada eterna a encontra e o que busca “pobreza de espírito”, com generosidade, é como se pedisse o Espírito Santo, que em nós está, pois ele é o tesouro verdadeiro que o Pai do Céu jamais nega a ninguém (Lc 11,13).
NOTAS: