Montanistas

Excertos da tradução em português de José Antoino Ceschin do livro de Joan O’Grady, “Heresy: Heretical Truth or Orthodox Error? a Study of Early Christian Heresies”

Outro grupo de cristãos que rompeu com a Igreja principal na segunda metade do segundo século era o dos montanistas. Esta seita não era tão herética em sua doutrina, mas era reformista na atitude. Assim como os marcionistas, os montanistas procuravam um retorno à pureza do cristianismo original, declarando que as regras do comportamento ético dos cristãos não provinham dos bispos ou das instituições da Igreja, mas apenas de Deus, que as ditava aos profetas inspirados.

Montanus, o fundador do grupo, que apareceu na Frigia por volta do ano 156 d.C., afirmava encontrar-se na linha de sucessão dos profetas. Sua missão declarada era a de propiciar um retorno à simplicidade da Igreja primitiva e anunciar o cumprimento da profecia de Pentecostes.

A dispensação do Espírito Santo devia substituir a de Cristo. A última efusão do Espírito, segundo a crença dos montanistas, acontecia naquele preciso instante, na Frigia. Alguns chegavam a afirmar que Montanus era a própria encarnação do Espírito Santo; e duas de suas seguidoras, Prisca e Maximília, eram tidas como profetisas que gritavam as ordens do Espírito Santo em delírios “espirituais”. Todos que “tinham o Espírito”eram chamados de profetas.

Durante o segundo século, a Grande Igreja formulava cuidadosamente as suas doutrinas e elaborava suas instituições administrativas. Os montanistas reagiram contra esses acontecimentos. Tinham em mente uma forma de religião mais livre e emocional, que exigia o êxtase durante o culto, visões proféticas de parte de seus líderes e que os fiéis viessem a “falar línguas” — de maneira parecida ao que acontece em alguns grupos carismáticos de hoje.

Apesar de o cristianismo ainda ser considerado uma seita sem autorização no Imperio Romano, estando portanto sujeito a perseguições periódicas, naqueles tempos — isto é, no final do segundo século — o número de cristãos crescia muitíssimo. Já não se tratava mais de pequenas comunidades fechadas, de “santos” heroicos, espalhadas por todo o Império. O crescimento do número de adeptos levou à diluição, como sempre acontece. Os novos convertidos ao cristianismo eram menos rígidos em seu comportamento; na maior parte dos casos envolviam-se em ocupações mundanas; e muitos bispos desejavam que as pessoas pudessem se tornar cristãs com mais facilidade e cada vez com menos exigências.

Montanus procurava alcançar um padrão mais elevado de moralidade. Desejava a imposição de regras mais rígidas para o jejum e o casamento e, para os “verdadeiros cristãos”, um afastamento completo do mundo. Não existiam doutrinas aceitas que ele negasse nem escrituras que repudiasse, mas decidiu retirar-se do que considerava uma Igreja secular, de modo a fundar a sua própria. No princípio do terceiro século, Tertuliano, o grande historiador jurista e antigo autor de textos contra as heresias, aderiu aos montanistas. Procurava uma Igreja que seguisse padrões morais excepcionalmente exigentes.

A questão básica parecia ser a seguinte: deve a Igreja ser uma sociedade de devotos religiosos reclusos, ou devem seus membros desfrutar de liberdade para se dedicarem a ocupações mundanas? Os montanistas consideravam que a Igreja cristã devia colocar-se na primeira destas duas categorias, mas a Grande Igreja, como um todo, optava pela segunda. Os cristãos batizados estavam entrando nas atividades normais da vida romana. E a Igreja admitia a organização, filosofia e jurisprudência romanas a seu serviço.

Por volta do fim daquele século a Igreja montanista afigurava-se uma rival ainda mais poderosa da Igreja católica do que os marcionistas haviam sido. Muitos cristãos já se perguntavam se seriam os montanistas ou os católicos os verdadeiros herdeiros de Cristo.

Cinquenta anos antes, quando Montanus ainda vivia, não existia uma organização que pudesse considerar-se aceita como a Igreja católica, de instituição divina. Tampouco havia um cânon estabelecido dos textos do Novo Testamento. O cristianismo encontrava-se ainda em um estado fluido. A grande obra de Irineu de Lião contra as heresias ainda não tinha sido escrita. Tudo parecia ser apenas um ligeiro desentendimento entre aqueles que defendiam diferentes interpretações e crenças, em vez de uma clara linha divisória entre “ortodoxos” e “hereges”. De modo que, nos tempos de Montanus, não era difícil que diferentes grupos de cristãos vivessem de acordo com seus próprios pontos de vista particulares sobre o estrito comportamento cristão, exercendo o culto da maneira que bem entendessem.

Na virada do século, no entanto, a Grande Igreja já era uma instituição administrativa e de ensino. Alguns textos eram considerados canónicos e outros não. As crenças e práticas dos montanistas foram então consideradas heréticas, os seus “profetas” e profecias condenados, e a própria seita excomungada, apesar de pequenas comunidades montanistas terem sobrevivido na Frigia até o século IV.

Apesar de os montanistas se oporem justamente contra uma Igreja institucional, dotada de um corpo formulado de ensinamentos dogmáticos, foi a própria existência dos montanistas e suas ações que ajudaram a criá-la. Como aconteceu no caso de outras grandes heresias, ao tentar combatê-las, os líderes da Igreja viram-se forçados a articular suas crenças através de doutrinas claras e concisas. E, para colocar um fim às divisões que poderiam destruir uma Igreja unificada, essas doutrinas eram publicadas em forma de dogma, isto é, como doutrinas que exigem a crença irrestrita e obediência cega.

Quando se iniciou o terceiro século, já havia uma coletânea estabelecida de crenças “ortodoxas”, obrigatórias para quem se considerasse parte da Igreja católica. A própria palavra “católico” mudou a acepção de universal para “ortodoxo”. O Ciedo dos Apóstolos já havia sido formulado e a adesão a ele era compulsória.

Então, neste ponto, as nossas perguntas podem ser feitas com maior clareza. Em vista de tudo o que aconteceu nos primeiros dois séculos, até que ponto o estabelecimento da doutrina e da instituição foi resultado da reação às circunstâncias e às palavras e ações dos outros? Teria sido um acontecimento necessário, inerente à própria religião? Neste caso, teria este acontecimento levado a novos insights e a uma compreensão mais profunda e, portanto, a um verdadeiro crescimento? Ou teria a formulação rígida levado a distorções? Hilário, bispo gaulês do século IV, estaria certo quando disse que “o erro dos outros nos leva a errar ao tentarmos colocar em termos humanos as verdades que deveriam permanecer escondidas na silenciosa veneração do coração” (Hilário, De Trinitate 2.Ü.7)? Mesmo aceitando alguma distorção inevitável, teria sido este o preço a pagar pela continuação de uma religião mundial, que poderia de outro modo ter-se evaporado numa multiplicidade de seitas divergentes? Seria essencial a definição lógica para uma Igreja institucional, a única capaz de dar continuidade à religião cristã?

Os montanistas reagiam contra o crescente legalismo e intelectualismo da Grande Igreja. Uma Igreja institucional, herdeira de muito do que havia de utilidade prática na lei e na administração do Império Romano, aos olhos dos montanistas, estava seguindo um caminho bem diferente daquele trilhado pela Igreja primitiva, estabelecida por Cristo. Então, quem estaria seguindo a estrada principal?

Estariam certos os montanistas ao pensar que a Igreja cristã deveria ser um pequeno grupo de cristãos completamente dedicados, ao invés de um vasto aglomerado de pessoas de todos os tipos e padrões? O que eles pretendiam era a qualidade e não a quantidade. Se os montanistas tivessem se tornado a força mais poderosa entre os cristãos do segundo século, a história da Igreja cristã poderia ter sido bem diferente. Uma Igreja montanista, se tivesse permanecido fiel a seus princípios, jamais teria se tornado uma potência temporal — e teria havido pouca ligação com os imperadores e reis. Mas teria uma Igreja montanista, que excluísse os medíocres e os mundanos, sobrevivido durante dezoito séculos?