Marie Madeleine Davy Sagrado

Marie-Madeleine Davy — O Sagrado e a Dessacralização

Extrato do livro “O Deserto Interior”, tradução de Benôni Lemos, Ed. Paulinas

Hoje devemos considerar o sagrado, a sacralização e a dessacralização de um modo totalmente novo. Isto é, devemos purificar a noção de sagrado, da qual fizemos mau uso durante muito tempo. Não se trata de nos subordinarmos à época na qual vivemos, a qual tende a não mais reconhecer o verdadeiro sagrado, mas de compreendermos — e não sem esforço — que o sagrado não se encontra no nível em que foi situado há bastante tempo.

Há séculos não cessamos de banalizar o sagrado e de projetá-lo em zonas que não lhe convém. Confundimos também o sagrado com o religioso, quando eles diferem totalmente um do outro. A tendência para esvaziar o religioso provocou um vazio que tentamos encher com alguns ersatz do sagrado. Isso multiplica os subprodutos de substituição. Com relação ao sagrado, eles se parecem com flores de plástico comparadas com as naturais; apesar de produzirem algum efeito, são falsas.

A obra de dessacralização realizada pelo mundo moderno, embora difícil de suportar, não é de modo algum blasfematória. Essa operação certamente desmantela, destrói e aniquila, mas nos permite ver com mais clareza, porque nos desintoxica. Os pseudo-guardiães que foram nossos pais, aos quais sucedemos, deslocaram o sagrado, observando-o e venerando-o em sua deriva. Ora, a mistura é mais nociva do que a rejeição global. Com efeito, a perda do sagrado é preferível a ambivalências mentirosas, do mesmo modo que o ateísmo leva vantagem sobre a idolatria.

Com relação ao sagrado, podem ser apresentadas duas proposições: 1) Deus é sagrado. — 2) Conseqüentemente, o mundo não é sagrado, mas profano. Do criado, nada é sagrado. Tal é, pelo menos, a originalidade do judeu-cristianismo, ao qual o Ocidente está ligado. Essa é também uma diferença maior entre o monoteísmo e o politeísmo. Poderíamos dizer, embora reconhecendo que tal comparação pode parecer estranha: da mesma forma que o homem não é naturalmente monógamo, também não é naturalmente monoteísta; ele é naturalmente idolatra. Isso não significa, de forma alguma, que, para se aceitar a monogamia ou o monoteísmo, deva-se fazer apelo ao sobrenatural. Este termo não tem aqui nenhum interesse. O judaísmo e o cristianismo combateram os deuses da Antigüidade e a sacralização dos lugares e dos objetos. E foram ao mesmo tempo vencedores e vencidos, continuando as tendências arcaicas sempre vivas na maioria dos homens. É somente por uma constante metanoia, logo, por uma conversão, por um retorno, que o homem pode tornar-se capaz de dar a Deus o que é de Deus, e à natureza o que pertence à natureza. Do mesmo modo — como veremos — que a mistura do temporal com o espiritual foi catastrófica para os cristãos, a mistura do sagrado com uma falsa sacralização é terrivelmente nociva.

É, pois, por extensão — e por falta de rigor — que se pode falar em terras sagradas, em lugares sagrados, em fontes ou árvores sagradas, em vasos sagrados, em ornamentos sagrados, em funções sagradas etc. Do mesmo modo, é por extensão, como as formas de linguagem, que se pode fazer referência a uma língua sagrada, a uma arte sagrada, pintura ou música (NA: Todavia, a expressão “arte sacra” está em uso. E a Encyclopédie des musiques sacrées, dirigida por Jacques Porte (Mame, Paris, 1968ss). Enfim, nenhum grupo ou coletividade são sagrados; uma sociedade pode considerar-se secreta, mas isso não a torna sagrada.

É evidente que se pode pensar e escrever, embora com repugnância, sobre aquilo que, por falta de precisão, chamamos sacralização cristã atual. Em princípio, ela consiste num retorno às origens, com certa liberdade de expressão; na realidade, ela chega a um perigoso desleixo, carregado de fantasia e, no mais das vezes, de mau gosto.

Facilmente chamamos de dessacralização as mudanças, as modificações de usos e hábitos que se sucederam nos últimos vinte anos. Se estudarmos, por exemplo, a evolução daquilo que durante muito tempo foi chamado “missa” (NA: Ver, a este respeito, Joseph-André Jungmann, Missarum Sollemnia, Aubier (col. Theologia, 3 vol.), Paris, 1956.), traz excelentes estudos, precedidos de um prefácio notável.), poderemos dizer que uma música gregoriana — para a celebração eucarística — causaria surpresa aos cristãos da jovem Igreja; mas eles não veriam nada de mais, como poderíamos ver hoje, na música pop e nos cânticos infantis. Na maior parte das igrejas, a liturgia perdeu os efeitos sacralizantes que tinha outrora. Em muitos ela provoca um incoercível aborrecimento, até mesmo irritação e lassidão.

Mesmo permanecendo fiéis às nossas escolhas, lembremo-nos bem de que os ritos, os ofícios, os próprios sacramentos passaram por uma evolução mais ou menos lenta. As religiões, do mesmo modo que a liturgia, adaptaram-se às épocas e aos climas. A sua evolução é perfeitamente normal. As modificações nos desagradam, porque, impelidos pelas vagas do tempo, temos necessidade de que exista algo estável. A caminhada sobre a areia solta nos esgota, mas nos lembra que não devemos lançar raízes nela. O que pertence ao tempo não pode comportar um valor eterno.

Alguns dentre nós experimentam um verdadeiro sofrimento quando vêem o mau uso que às vezes é feito de igrejas e mosteiros desocupados. É penoso constatar que tais lugares — não sagrados, mas sacralizados — são usados como cinemas, mercados etc. Podemos sentir-nos reconfortados quando vemos novas fundações religiosas instalarem-se em mosteiros que tinham sido abandonados por falta de religiosos ou simplesmente por motivos de ordem econômica. Quando se trata, por exemplo, de igrejas em estilo romano, de mosteiros cartusianos, de abadias cistercienses, que não correspondiam mais à sua finalidade, podemos entristecer-nos; esses escrínios maravilhosos parecem privados de sua verdadeira vida. Visitamo-los como a monumentos pertencentes ao passado.

O desapego em relação ao tempo e à história exige que possamos contemplar esses lugares de beleza e de prece sem nostalgia, aceitando as mudanças inerentes à condição humana. Os monges não se apegam a essas moradas situadas no espaço; a prova é que as deixam sem dificuldade, se bem que humanamente sintam saudade da harmonia das capelas e dos claustros e também do ambiente favorável ao silêncio e à oração. Eles sabem que o recolhimento se situa no coração e que é aí também que se encontra a beleza. Somente a interioridade torna livre. Os monges errantes da Índia, os sannyasis, andam de gruta em gruta, de caverna em caverna, de floresta em floresta.

A verdadeira morada é dentro; o importante é, pois, construí-la. O mosteiro exterior se eleva pela adição de pedras sobre pedras; o mosteiro interior resulta de um desaterro. Essas duas operações são rigorosamente diferentes. No século XII, as abadias e os mosteiros recobriam grandes áreas e possuíam terras e florestas. Hoje tais riquezas seriam escandalosas frente aos “pobres”. Daí a tendência atual para a formação de grupos pequenos. É verdade que, a despeito de um aumento de vocações, os monges estão se tornando cada vez menos numerosos, e isso por muitos motivos. Todavia, a vida contemplativa normalmente precisa do quadro da natureza e de sua beleza. Quem desprezasse esse dado demonstraria falta de profundidade.

Apesar de ser lugar da Palavra e da Aliança divina, o deserto não é um lugar sagrado, como não o são as montanhas nas quais o Eterno se manifestou, como o Sinai, o Horeb e, com Cristo, o Tabor. O templo não é sagrado, se bem que seja “consagrado” e dividido em dois, com um coro reservado aos oficiantes e uma nave destinada aos leigos. Essa dualidade tem um caráter simbólico, que indica uma hierarquia.

Convém perguntar-se por que, no Ocidente, com o passar dos séculos, o homem “desviou” a noção de sagrado, estendendo-a ao que não dizia respeito a ela.

A resposta é simples. O pagão permaneceu presente no judeu e no cristão; reprimido neles, tende sempre a emergir. Assim a sacralização do profano coincide com uma dessacralização, uma profanação do sagrado (NA: Cf., a este respeito, o artigo muito sugestivo de Jacques Ellul, “La désacralisation par le christianisme et la sacralisation par le christianisme” in Corps écrit, 2 Champ du sacré, PUF, Paris, 1982, pp. 141s.). Quando os grupos e as seitas tendem hoje a multiplicar o sagrado, quando os integristas se aplicam nesse sentido, fazem obra de dessacralização. Ainda uma vez, sagrado é somente Deus. As “imagens” não participam desse sagrado, a não ser por derivação.

O homem moderno perdeu o sentido do temor em relação ao Deus sagrado. Relendo a obra de Rudolph Otto sobre o sagrado (Das Heilige), escrita em 1917, percebemos as mudanças que se efetuaram nos níveis religioso e psicológico. Estamos muito distanciados desse mysterium tremendum, que hoje não provoca mais nenhum sentimento de pavor. O homem moderno não saberia considerar-se “cinza e ” como Abraão.

Exerceria ainda o sagrado algum poder de fascinação, mesmo relegado ao inconsciente? É provável. Privado de Deus, o homem sente vertigem, embora ignore que está longe de Deus. Incapaz de viver num espaço vazio, ele tenta enchê-lo, sacralizando-o com a introdução de termos “sacralizados” no vocabulário mais banal (NA: O mesmo se dá com as religiões. Quando elas se enfraquecem, o termo é facilmente empregado em tom jocoso. Recentemente um jornal vespertino dava como título a um artigo. “As três ‘religiões’ da Aquitânia: rúgbi, touros e mesa!”). Profanando o sagrado até desnaturá-lo, o homem sofre as conseqüências de sua blasfêmia. Somente o puro pode aproximar-se do sagrado; ora, a impureza em todas as suas formas sempre seduz o homem em sua necessidade de disfarçar, de caricaturar, digamos mesmo, de destruir. Essa quase necessidade de destruição fornece a prova de que o homem, parodiando o sagrado, não se desinteressa dele.

A falsa sacralização que, há vários anos, não cessa de se desenvolver na França, provém de uma tendência muito elaborada e nitidamente anti-judaica-cristã; ela se manifesta por um retorno constante ao estudo da Antigüidade, seja do Egito, da Grécia, de Roma, seja dos mitos das sociedades primitivas. O que se costuma chamar, com ou sem razão, de “nova direita”, esforça-se por exaltar o pensamento arcaico. Por outro lado, grupos e também indivíduos isolados se entregam, em menor escala, a uma outra forma de sacralização dessacralizante, propagando um interesse crescente pelas ciências ocultas. Pode-se falar, com referência a uns e outros, de uma tendência — nítida demais para ser involuntária — de distrair o homem moderno de sua realidade específica. Os estudos sobre os mitos, as imagens, os símbolos, são feitos nessa perspectiva. Nunca se trata de encaminhar para uma experiência concernente à dimensão de profundidade. O homem moderno pode encontrar em seu inconsciente elementos que lhe permitam coincidir com um arcaísmo do qual ele nunca se libertou totalmente, a menos, contudo, que tenha adquirido o que se poderia denominar metaconsciência. O estudo das sociedades primitivas, dos diferentes fenômenos religiosos, dos modos de sacralização, pode interessar aos historiadores das religiões e proporcionar um conhecimento do passado que não poderíamos desprezar; contudo, uma vez mais, esse tipo de saber pode levar e leva de fato a uma pseudo-sacralização monstruosamente dessacralizadora.

Por isso, o homem moderno se acha entre o martelo e a bigorna: de um lado, o materialismo político e social; do outro, uma outra forma de materialismo “aureolada”, tão anestesiante como a primeira. Os extremos se tocam, e a serpente sempre acaba mordendo a própria cauda!

A sacralidade cósmica se apresenta como hierofania que manifesta o sagrado, mas não o constitui. Como observou Mircea Eliade, em sua obra O Sagrado e o Profano (Gallimard (col. Idées), Paris, 1965; em português pela Martins Fontes), “o espaço não era homogêneo” para a mentalidade arcaica. Assim o Eterno disse a Moisés: “Não te aproximes daqui; tira as sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é uma terra santa” (Ex 3,5).

Existe uma diferença fundamental entre o sagrado e a santidade. A consulta de uma Concordância bíblica permite ver a raridade do termo “sagrado”, ao passo que os termos “santo” e “santidade” aparecem com freqüência. Deus é sagrado e não comunica seu caráter sagrado. Mas ele é santo e comunica a sua santidade. Assim, na Igreja primitiva, falava-se da santidade do povo de Deus, e são Paulo, dirigindo-se às diversas comunidades, qualificava seus membros de “santos”.

Havia lugares “santos”, nos quais não se podia entrar sem preparação; somente certas pessoas podiam entrar neles. A. J. Festugière cita o caso de Toas, que, não ousando penetrar no ádito do templo de Táuride, de fora chamou Ifigênia, pedindo-lhe que viesse até a porta. No templo de Jerusalém, o segundo átrio — chamado “o Santo” (to hágion) — era proibido aos gentios sob pena de morte (NA: Cf. A. J. Festugière, La Sainteté, PUF, Paris, 1942, pp. 7 e 9.). Não se tocava impunemente nas coisas santas. A relação entre santo e sagrado provém da “separação” que exigem.

Emanuel Levinas observa que “a Michna nunca fala do sagrado” (NA: Du sacré au saint. Cinq nouvelles. Lectures talmudiques, Ed. de Minit, Paris, 1977, p. 82.), e que “o sagrado… é a penumbra na qual floresce a bruxaria, que o judaísmo abomina” (Ibid.)”. Com efeito, “a bruxaria, prima coirmã, se não irmã, do sagrado — parenta um pouco desacreditada, mas que, na família, se beneficia das relações de seu irmão, recebido no melhor mundo — a bruxaria é a mestra da aparência” (Ibid, pp 89-90). Não se poderia falar com mais exatidão e humor.

Se a bruxaria é denunciada de modo particular no Deuteronômio e no Êxodo, se bruxos e bruxas eram condenados a “não viverem”, isto é, a serem executados, como o foram mais tarde na Idade Média, era em razão mesmo dessa degradação do sagrado e da degenerescência que provocavam. A bruxaria nasce de uma perversidade do coração e da inteligência, não só condenável em si mesma, mas também contagiosa em seus efeitos.

Não se deve brincar com o sagrado, nem deformá-lo, deslocando-o de sua realidade e levando-o para o mundo das aparências. Deus não pode ser visto. Do mesmo modo que o sagrado não é objeto de visão. “A bruxaria consiste em querer ver além do que é possível ver (Ibid p. 95).

A esse respeito, Emanuel Levinas faz alusão a um Midraxe, no qual uma criada “estava orgulhosa por ter visto o rei” (Ibid. p. 95-96), ao passo que a princesa que ela acompanhava fechou os olhos quando o rei passava. Sem percebê-lo, ela esteve mais próxima do personagem real do que a criada. “A bruxaria é a curiosidade que se manifesta onde é necessário baixar os olhos, é a indiscreção a respeito do Divino, a insensibilidade ao mistério, a claridade projetada naquilo cuja proximidade exige respeito” (Ibid. p. 96).

As palavras de Emanuel Levinas situam perfeitamente o sagrado e seus opostos. Conseqüentemente, ele denuncia, e isso é precioso para nós, “certas formas do ‘freudismo’… e certas formas da vida sexual” (Ibid.). Poderíamos dizer, sem exagero, que é rigorosamente falso sacralizar, como se faz habitualmente, a satisfação sexual, falar de êxtase sexual, sacralizando-o. Podemos acrescentar que o “freudismo” é uma das causas de uma pseudo-sacralização que, mais uma vez, deve ser qualificada de dessacralização.

Tal sacralização dessacralizadora provoca hoje um aumento de interesse pela vidência, pelas predições, pelos presságios, pelo espiritismo, pela necromancia e até pelos horóscopos, e uma forma de metapsíquica que procede principalmente de um psiquismo degradado, de uma incapacidade metafísica e sobretudo de uma carência de compreensão espiritual.

Se temos, por momentos, a ilusão de que Deus se retira do mundo, é porque o mundo se retira dele. Afastando-nos de sua presença, temos a impressão de seu abandono. Ora, os ausentes somos nós. Estando ausentes de Deus, afastamo-nos da humanidade. Sacralizar o mundo significa abandoná-lo, não mais amá-lo, já que o amor só é redentor na medida em que passa por Deus, em que vive em Deus, o único sagrado.

Esse é um dos temas de meditação do “eremita” que habita seu deserto interior. Ele está em condições de compreender que a vida do homem é “sagrada” por extensão do termo. Mas, o Eterno está presente na criatura humana. Essa presença justifica e explica a tendência do homem para o sagrado e deveria preservá-lo de todas as desfigurações que não cessam de tentá-lo, enquanto ele não compreender que só Deus é sagrado. O sagrado não convém nem aos lugares, nem aos objetivos, nem ao culto. Pela criação à imagem divina, estando Deus presente no homem, este contém o sagrado à maneira de um vaso. Tal é o mistério do homem. A centelha divina é sagrada, mas o homem, enquanto criatura, pertence ao mundo profano votado à morte. Descobrindo essa centelha divina e atirando-se nela, o homem pode finalmente participar da sacralidade divina.

“A alma e a Deidade são Unidade”, escreveu Mestre Eckhart.