A filosofia sempre reivindicou as prerrogativas de ciência suprema, de uma sabedoria, sapientia. Porém os cristãos conhecem uma outra sabedoria que para eles tem mesmo mais valor, a teologia. Haveria, portanto, duas sabedorias?
Em princípio, não pode haver e não há senão uma única Sabedoria, que é a de Deus. Mas como há, do ponto de vista da criatura, duas ordens, a ordem natural e a ordem sobrenatural, deve-se reconhecer, do lado do homem, a existência de duas ciências supremas correspondentes, a sabedoria natural e a sabedoria sobrenatural. O que distingue formalmente estas duas sabedorias é sua luz, o lumen: a primeira, a filosofia, está sob o lumen rationis, e a segunda, a teologia, sob o lumen lidei. A filosofia considera as verdades enquanto elas são acessíveis à razão, e a teologia enquanto reveladas) Disto resulta que, tendo sua luz e, portanto, seus princípios próprios, a filosofia é uma ciência autônoma e que, remontando até à causa primeira, ela bem merece o título de sabedoria. Entretanto, ela não deixa de ser inferior à teologia, porque só indiretamente atinge Deus, a partir das criaturas, e sobretudo porque o lumen rationis é menos elevado que o lumen lidei.
Provindo de uma mesma fonte, que é a Sabedoria divina, e tendo objetos que parcialmente coincidem (algumas verdades são comuns à razão e à fé), filosofia e teologia têm necessariamente relações recíprocas. Três afirmações principais podem explicitá-las.
Existe harmonia entre as duas sabedorias. Devido à sua origem comum que é a Sabedoria divina, filosofia e teologia não podem se contradizer em face de um mesmo objeto. Não há duas verdades, como sustentaram mais ou menos abertamente os averroistas ou, como se diz de maneira corrente, existe acordo entre a razão e a fé.
A teologia tem um poder extrínseco de regência sobre a filosofia. A título de sabedoria suprema, a teologia pode exercer e de fato tem exercido uma dupla influência sobre a filosofia. Uma influência positiva antes de tudo, de direção, na medida em que ela propõe à filosofia problemas ou soluções de ordem filosófica, e sobre os quais os filósofos não tinham pensado. Foi assim, por exemplo, que historicamente, o problema da criação e a afirmação correlativa da dependência absoluta das criaturas com relação a Deus, entraram no plano da especulação racional. Deve-se, entretanto, especificar que esta influência de direção, por mais real e eficaz que seja, permanece de alguma forma exterior à filosofia, que possui seus princípios e seu método próprio. Uma influência negativa de salvaguarda. Sem ter de intervir no próprio processo da reflexão filosófica, a teologia tem, a título de sabedoria suprema, o direito de julgar as conclusões desta, e portanto, de as declarar falsas se elas são manifestamente contrárias a seus dados mais certos. Este poder pertence evidentemente à teologia, unicamente na medida em que as proposições filosóficas tenham qualquer relação com o dado revelado.
A filosofia fornece à teologia seu instrumento racional.
A filosofia, por sua vez, presta serviço à teologia assegurando-lhe o conjunto dos instrumentos racionais que lhe são necessários para se constituir em ciência. Como nesta função ela permanece, entretanto, sempre subordinada à ciência do revelado, diz-se-que ela age a título de serva da teologia, ancilla theologiae.
Este problema das relações entre a filosofia e a teologia, que aqui não pudemos senão aflorar, foi objeto de uma reflexão contínua no curso da história do pensamento cristão, e não podia deixar de ser assim, uma vez que o espírito humano se via solicitado pelos dois lados ao mesmo tempo.
Até o século XIII, o pensamento cristão ocidental foi sobretudo representado por esta grande corrente de especulações que, remontando ao doutor de Hippone, é conhecida sob o nome de agostinismo. Pensava-se então como teólogo, ou como cristão, utilizando-se evidentemente dos recursos do pensamento racional, mas sem se ter a preocupação de desenvolver sistematicamente a este. A teologia absorvia de certa forma a filosofia, a tal ponto que o limite dos dois saberes permanecia um pouco incerto. A descoberta, no século XIII, da física e da metafísica de Aristóteles, colocando os cristãos pela primeira vez em face de um poderoso sistema racional foi ocasião para uma grande perturbação nos espíritos. O problema das relações entre as duas sabedorias surgiu, então, e de maneira por demais aguda. S. Tomás iria superar essa crise dando, de maneira muito clara à filosofia, seu estatuto autônomo de ciência, sem por isso, evidentemente, subtraí-la à regulamentação suprema da sabedoria revelada. – Não é sem interêsse assinalar que, hoje, essa questão tem sido de nôvo objeto de vivas discussões na França, discussões suscitadas por estudos de Bréhier que pretende sustentar, sem razão, que a filosofia medieval não era uma verdadeira filosofia, uma vez que havia: sido elaborada sob o domínio do dogma. (cf. sobre este debate, La philosophie chrétienne, Juvisy, 1933).
Juntando um a um todos os elementos que acabamos de explicitar, distinguindo sucessivamente a filosofia da experiência, das ciências e da teologia, chegamos a uma fórmula, desta vez completa: “A filosofia é o conhecimento, pelas causas primeiras e mais universais, obtido à luz da razão natural”. … Philosophia est cognitio per primas et universales causas sub lumine naturali rationis.
Uma última dificuldade se coloca. Até aqui temos considerado a filosofia sobretudo sob o seu aspecto de conhecimento desinteressado ou de ciência especulativa. Não vemos porém nela, de maneira corrente, também uma arte de viver, quer dizer, uma ciência essencialmente prática? Não há nela, por este fato, uma dualidade de objeto, comprometendo necessariamente a unidade do saber? – Responderemos a esta dificuldade fazendo observar que o princípio último da ordem especulativa é, ao mesmo tempo, princípio primeiro da ordem prática. Nele, todas as linhas de causalidade e de explicação se encontram. Deus, concretamente, é ao mesmo tempo causa do ser e do agir que nele encontram, um e outro, sua razão de ser. Não há, portanto, senão uma só sabedoria que é, ao mesmo tempo, especulativa e prática. Precisemos, entretanto, que nas condições de fato do destino do homem, que é sobrenatural, a filosofia moral, por si mesma, é incapaz de determinar o fim último da vida e de indicar os meios que permitirão eficazmente atingi-lo. (Gardeil)