classificação das ciências

Como já o dissemos, as ciências para Tomás de Aquino não se distinguem pela diferença material dos seres que estudam, mas segundo o ponto de vista que é visado nesses seres É a tese geral que se exprime quando se afirma que as ciências, como aliás todos os hábitos, são especificadas por seu objeto formal. Dizendo-o de outra forma, as ciências são como organismos intelectuais que podem se relacionar a coisas materialmente muito diversas mas todas consideradas sob um mesmo aspecto. Ao inverso, um mesmo objeto material pode ser considerado sob pontos de vista diferentes por ciências diferentes. O “nariz achatado” do exemplo de Aristóteles é assim, em sua curva, objeto da geometria, enquanto que sob o ponto de vista de sua compleição física, é objeto da física.

Observe-se que a tradição filosófica, mesmo escolástica, nem sempre permaneceu fiel a esse princípio. Os modernos, sob a influência de Wolf, dividiram a metafísica em ontologia, ciência do ser, em teodiceia, ciência da alma, e cosmologia, ciência do mundo. É certo que essas distinções não carecem de fundamento, mas tendem a substituir, na divisão da filosofia, pontos de vista de separação material por diferenças formais de objetos. Ciência e filosofia perdem, assim, alguma coisa da forte estrutura racional que haviam recebido na sistematização precedente.

Antes de abordar o problema do fundamento preciso da distinção das ciências, não será inútil esclarecer algumas dificuldades que provêm do entrecruzamento de dois pontos de vista na doutrina tomista da ciência.

Considerando a ciência em sua estrutura lógica, discernimos aí três elementos constituintes: subjectum (frequentemente designado pela expressão genus subjectum), passio propria e principium. Em última análise, é do princípio, que constitui como que o laço lógico do sujeito e do predicado, que provém a especificidade de uma ciência.

Se nos colocamos na linha do hábito: encontramos diante de nós o objeto, o objeto material, se se trata da realidade considerada no todo que ela é: o objeto formal quando se retém o aspecto particular sob o qual a realidade é atingida. Por sua vez, o objeto formal se subdivide em objeto formal quod (ratio formalis quae attingitur) e objeto formal quo (ratio formalis sub qua). O objeto formal quod é, no objeto, o próprio aspecto de ser que é atingido pelo hábito (ens in quantum ens no caso da metafísica); o objeto formal quo é, vindo da inteligência, o princípio formal que dá a uma ciência sua luz própria. Exemplificando, no caso da visão, diremos que o objeto visto (o muro, o céu) representa o objeto material desta atividade sensorial; que a cor é seu objeto formal quod, enquanto que a luz seria seu objeto formal quo. É o objeto formal quo, ou a luz intelectual, que determina, aplicando-se sobre o objeto material, o objeto formal quod. Ele corresponde mais ou menos ao principium do primeiro vocabulário. Não se pode estabelecer um paralelismo tão estrito entre os outros elementos dos dois conjuntos, poisa passio propria, tanto quanto o subjectum são marcados pelo objeto formal quod.

As ciências se distinguem, portanto, pelo seu objeto formal quo; sua diversidade, dizendo-o de outra forma, procede do espírito e, sob um outro ponto de vista, dos princípios que ele encerra (cf. II Anal., I, l. 41, n.10-11).

“(Aristóteles) não busca a razão da diversidade das ciências na diversidade de seus sujeitos, mas na de seus princípios. Ele diz, com efeito, que uma ciência difere de outra por ter outros princípios…

Para se evidenciar isto, convém saber que não é a diversidade material do objeto que diversifica o hábito, mas somente sua diversidade formal. Como, portanto, o objeto próprio da ciência é “o que pode ser sabido” (scibile), não se diferenciarão as ciências segundo a diversidade material das coisas “que podem ser sabidas”, mas conforme sua diversidade formal. Do mesmo modo que a razão formal do visível vem da luz, graças à qual percebe-se a cor, assim a razão formal de “o que pode ser sabido” depende dos princípios a partir dos quais tem-se a ciência.”

A ratio formalis scibilis é tomada, portanto, a partir dos princípios, de onde resulta, em definitivo, a diversidade e a especificidade das ciências. Os princípios, entretanto, não são para Tomás de Aquino o fundamento noético último dessa diversidade. Este se acha na imaterialidade. Portanto, como se poderá operar a passagem para esse novo ponto de vista? Tomás de Aquino no-lo explica no De Trinitate (q. 5, a. 1)

“Importa saber que, quando os hábitos ou as potências são distinguidas segundo seus objetos, eles não o são por qualquer diferença destes objetos, mas segundo aquelas que concernem a estes objetos enquanto tais… Resulta disto que as ciências especulativas devem ser divididas conforme a diferença dos objetos de especulação considerados enquanto tais. Ora, em um objeto de especulação, enquanto ele se relaciona com uma potência especulativa, há alguma coisa que vem da potência intelectual, e alguma coisa que vem do hábito pelo qual a inteligência se acha aperfeiçoada. Da inteligência lhe advém ser imaterial, já que esta faculdade, ela própria, é imaterial… E, é assim que, ao objeto de especulação que se relaciona com uma ciência especulativa lhe é próprio o estar separado da matéria e do movimento ou implicar estas coisas. As ciências especulativas se distinguem, portanto, segundo seu grau de afastamento da matéria e do movimento.”

Vê-se como Tomás de Aquino passa do “speculabile” ao “immateriale” e acaba assim por relacionar a diversidade das ciências com os graus de imaterialidade. Uma coisa é tanto mais inteligível, ou inteligente, quanto ela é mais imaterial; assim o anjo, mais elevado que o homem na ordem da imaterialidade, é também mais inteligível e mais inteligente do que ele. Observemos que por imaterialidade não se deve entender somente aqui precisamente a ausência da matéria física, “carentia materiae”, mas antes a independência em face das condições que resultam da matéria, “elevatio super conditiones materiae”: formalmente, é a não potencialidade.

A classificação aristotélica das ciências é dominada pela famosa distinção dos três graus de abstração ou de materialidade, distinção que se enraíza no que há de mais profundo da vida da inteligência. Ela tem como efeito distribuir as ciências (compreendida aí a sabedoria metafísica) em três grandes classes racionalmente distintas: física, matemática e metafísica. Esta classificação já era aproximativamente a de Platão, e pode-se dizer que ela é comum na história do pensamento. Todavia, no tomismo ela tem uma significação muito precisa que é função nossa determinar.

Podemos considerar nosso objeto de conhecimento segundo três graus de abstração ou de imaterialidade. A cada um desses graus, deixa-se uma certa parte de matéria de que se faz abstração e pode-se conservar ainda uma outra parte de matéria. – Segundo se considere a parte da matéria que se deixa ou a que se conserva, ter-se-á duas maneiras de caracterizar cada um dos graus de abstração, sendo a segunda denominada por Tomás de Aquino secundum modum definiendi.

Recordemos aqui algumas precisões de vocabulário. Quando Tomás de Aquino (I q. 85, a. 1 ad 2) fala “materia signata”, “materia sensibilis”, “materia intelligibilis”, que é que se deve entender por essas expressões? A materia signata ou individualis é a matéria enquanto ela é princípio de individuação (haec caro, haec ossa). A matéria sensibilis ou communis é a matéria enquanto ela é princípio das qualidades sensíveis e do movimento. A materia intelligibilis é a matéria enquanto ela é sujeito da quantidade e das determinações da ordem da quantidade.

Isto posto, (I. q. 85, a. 1, ad. 2), o primeiro esfôrço da inteligência abstrativa consiste em considerar as coisas independentemente dos seres particulares que atingem nossos sentidos. Obtém-se este objeto abstraindo-se “a materia signata vel individuali”: 1. grau de abstração. – O segundo esfôrço da inteligência abstrativa consiste em considerar as coisas independentemente de suas qualidades sensíveis e de seus movimentos, para reter somente suas determinações de ordem quantitativa. Eu abstraio “a materia sensibili et motu”: 2. grau de abstração. – O terceiro esfôrço da inteligência abstrativa consiste em considerar as coisas independentemente de todas as condições materiais. Tem-se, então, o objeto metafísico, o qual é totalmente separado da matéria: 3. grau de abstração.

Pode-se também caracterizar os graus de abstração segundo a matéria que resta e permanece, portanto, incluída na definição do termo médio (Tomás de Aquino, Metaf., VI, l.I; Coment. s/De Trinitate, q. 5, a. 1). O objeto físico é aquele que não pode existir, “esse”, nem ser definido sem a matéria sensível; ele depende dela “secundum esse et rationem”. O objeto matemático será definido sem a matéria sensível, se bem que não possa existir fora dela; ele depende dela “secundum esse non secundum rationem”. O objeto metafísico é definido sem qualquer matéria; ele não depende dela “nec secundum esse nec secundum rationem”. Tudo isto está perfeitamente caracterizado neste texto do De Trinitate (q. 5, a. 1):

“… há coisas que dependem da matéria quanto à sua existência e quanto ao conhecimento que se pode ter delas: tais são as coisas em cuja definição está implicada a matéria sensível e que, portanto, não podem ser compreendidas sem essa matéria; assim, na definição do homem, é necessário incluir a carne e os ossos. Destas coisas trata a Física ou Ciência da natureza. Há outras coisas que, se bem sejam dependentes da matéria quanto à sua existência, não dependem dela quanto ao conhecimento que se pode ter a seu respeito, visto que sua definição não inclui a matéria sensível; assim se verifica quanto à linha e o número. Destas coisas trata a Matemática. Há, finalmente, outros objetos de especulação que não dependem da matéria em sua existência, porque eles podem existir sem matéria: seja porque jamais estão na matéria, como Deus e o anjo, seja porque em certos casos eles implicam matéria e em outros, não, tais como a substância, a qualidade, a potência e o ato, o uno e o múltiplo, etc. De todas essas coisas trata a Teologia, chamada Ciência divina devido ao fato de que o mais importante de seus objetos é Deus. Denomina-se, também, Metafísica…”

Depois de Caietano (De Ente et Essentia, Proemium) e de João de Tomás de Aquino (Curs. Phil. Log., II.a p.a, q. 27, a. 1) numerosos intérpretes modernos consideram que a abstração sobre a qual se fundamenta objetivamente a diversidade das ciências não deve ser entendida como abstração total, quer dizer, abstração lógica de um predicável com relação a seus inferiores, mas como abstração formal, a qual distingue as razões formais dos aspectos materiais. As noções abstratas nas ciências têm valor de universal com relação aos termos dos quais elas procedem, mas é por sua razão formal objetiva e não por sua universalidade que elas são constituídas em tal ou tal grau do saber.

Restar-nos-ia mostrar que essa teoria dos graus de abstração, que à primeira vista se apresenta como um mecanismo mental de certa rigidez, corresponde em Tomás de Aquino a uma atividade de espírito muito mais diversificada. Na realidade, o processo de formação do objeto em cada grau de abstração corresponde a uma atividade muito original; isto é verdade sobretudo no nível metafísico, onde Tomás de Aquino, em seu Comentário sobre o De Trinitate de Boécio (q. 5, a. 3), substitui o termo de abstração, reservado aos graus inferiores do saber, pelo de separação. Voltaremos, no momento oportuno, a essas importantes discriminações.

A cada um desses graus corresponde uma das três grandes partes da filosofia: a física, a matemática e a metafísica. Mas no interior ou nos intervalos destes três grandes estágios do saber, podemos distinguir planos intermediários de inteligibilidade.

No interior de cada grau, inicialmente, poder-se-á distinguir modalidades mais ou menos abstratas; isso é constatável sobretudo no 2. grau, no qual Tomás de Aquino discernia já um plano geométrico menos abstrato e um plano aritmético mais abstrato. Hoje, seria sem dúvida necessário superpor-lhe um plano algébrico.

Pode-se ainda variar a inteligibilidade das ciências constituindo espécies de intermediários entre os graus de abstração, o que Tomás de Aquino, em seguida a Aristóteles, chamou de scientice medite. Consegue-se isso iluminando o sujeito de uma ciência de grau inferior com os princípios tomados de um grau superior de abstração (subalternação). Os antigos propunham os exemplos da perspectiva ou ótica, da música e da astronomia. Hoje seria necessário incluir nessa categoria todo o conjunto compreendido sob o nome de física matemática. As ciências intermediárias são, graças a princípios tirados de uma ordem mais elevada, mais inteligíveis que as ciências que se acham ao nível de seu próprio sujeito. Entretanto, observa Tomás de Aquino, elas são ciências de grau inferior, “dicuntur esse magis naturales quam mathematicae”, e isso porque a especificação se faz essencialmente pelo termo e, o termo dessas ciências intermediárias se acha no grau inferior.

Será necessário acrescentar que um vez constituídos os diversos planos de inteligibilidade ou os graus do saber, poder-se-ão distinguir as ciências particulares, em cada grau, pela divisão do seu sujeito. A ciência das plantas será, assim, uma subdivisão da física. Tais ciências particulares são chamadas subalternadas em razão de seu sujeito.

A metafísica e a matemática estão em um grau de inteligibilidade suficientemente elevado para que se possa organizá-las sem muita dificuldade; não se dá o mesmo com relação às ciências da natureza que, permanecendo mais engajadas na matéria, fazem surgir questões muito mais complicadas. Por isso, iremos examiná-las à parte.

Existe uma ciência física demonstrativa, que procede a partir das definições e dos princípios das essências naturais, e que procura explicar as propriedades dessas essências. Foi o que os antigos compreenderam quando tentaram constituir uma ciência explicativa dos fenômenos da natureza, a Philosophia naturalis. Infelizmente, entretanto, não conhecemos senão de maneira muito imperfeita essas essências naturais que deveriam servir de ponto de partida para nossas demonstrações. O que faz com que essa ciência dedutiva da natureza não chegue, o mais frequentemente, na realidade, senão a generalidades ou a conclusões hipotéticas: os fenômenos observados permanecerão, em sua maior parte, fora de sua apreciação.

Deveremos por isso renunciar completamente ao conhecimento racional desses fenômenos? Não, porque em um nível inferior podem-se constituir, e, de fato, se constituíram, ciências particulares que se aplicam ao detalhe dos fenômenos. O que é necessário observar bem, é que de uma parte essas ciências não estão em continuidade perfeita com a philosophia naturalis, e que, por outra parte, elas não podem nos dar senão um conhecimento aproximado e relativo da essência das coisas, que permanece sempre velada. As conclusões da física moderna não são, em grande parte senão sinais mais ou menos denunciadores da verdadeira natureza das coisas.

Levando-se em conta todas as observações precedentes, é-nos possível estabelecer o seguinte esquema que resume a classificação das ciências teoréticas, segundo a filosofia de Tomás de Aquino:

3o. grau de imaterialidade: metafísica

2o. grau de imaterialidade: matemática, física matemática

1o. grau de imaterialidade: filosofia da natureza, ciências da natureza (Gardeil)