Ora, se refletimos sobre o gênero de aparecimento implicado em toda linguagem, sobre seu fundamento fenomenológico, vemos claramente que esse aparecimento não é senão aquilo a que chamamos ao longo de todas as nossas análises a verdade do mundo. É num mundo que aparece a coisa designada pela palavra, é num mundo que se mostra, da mesma maneira, o conjunto dos predicados (reais, imaginários ou ideais) que lhe são conferidos, é num mundo, enfim, que a palavra, visual, sonora (mas também a parte ideal que ela sempre comporta), se mostra a nós, por mais fugidia ou marginal que seja este aparecimento. Porque ela encontra seus alicerces fenomenológicos no mundo, porque também cada um de seus constituintes – palavras, significações, coisas visadas e predicados atribuídos a essas coisas – se mostra no mundo, a palavra falada pelos homens pertence a este mundo no sentido radical de que encontra nele seu fundamento fenomenológico incontornável. Nós lhe chamaremos então a palavra do mundo. A palavra humana diz mostrando no mundo. Sua maneira de dizer é um fazer-ver, esse fazer-ver que só é possível no horizonte de visibilidade do “lá fora”. O que é dito na palavra do mundo apresenta pois certo número de caracteres que resultam diretamente da maneira de mostrar desta palavra:
1) Ele se dá mostrando-se lá fora num mundo, à maneira de uma imagem.
2) Ele se dá como irreal. Consideremos a primeira estrofe do poema de Trakl intitulado “Uma Noite de Inverno”:1
Quando neva na janela
Quão longamente soa o sino da noite,
Para muitos a mesa está posta
E a casa está bem provida.
As coisas em questão – a neve, o sino, a noite –, nomeadas pelo poeta e como chamadas por seu nome, apresentam-se, mostram-se a nosso espírito. Todavia, não se instalam entre os objetos que nos circundam, no cômodo em que estamos. Estão presentes, mas numa espécie de ausência. Presentes porque, evocadas pela palavra do poeta, elas aparecem; ausentes porque, conquanto apareçam, não estão aí. Tal é o enigma da palavra do poeta: ela faz aparecer a coisa e, assim, lhe dá o ser, de tal modo, todavia, que, dita por esta palavra, a coisa não existe realmente. A palavra lhe dá o ser retirando-o, dá a coisa, mas como não sendo.
3) Ora, não é somente a palavra do poeta que dá de tal modo que retira o ser ao que dá, e isso por causa de seu próprio modo de dar. Cada palavra humana procede igualmente: não oferece o que nomeia senão numa pseudopresença, de modo que a coisa nomeada, enquanto só existe nesta nomeação e por ela, não existe realmente. Na medida em que me limito a dizer: “O cão é um fiel companheiro do homem”, não há ainda, por este enunciado, nenhum cão nem nenhum homem real. Tal é a impotência da palavra humana, sua impotência radical de pôr na existência efetiva tudo aquilo de que fala, tudo o que diz. Desta impotência, a impotência da ética tradicional – a do preceito da Lei Antiga – de produzir o agir que ela prescreve é apenas um caso particular. Ora, esta impotência da palavra para conduzir à existência real o que ela nomeia não é devida ao acaso, a algum obstáculo exterior e contingente. E o próprio modo como ela fala que desrealiza no princípio tudo aquilo de que fala. E seu modo de mostrar na exterioridade do mundo que, colocando toda e qualquer coisa no exterior dela mesma, a despoja assim de sua própria realidade, deixando subsistir dela tão somente uma aparência vazia. [308]
4) Se, despojando toda e qualquer coisa de sua realidade ao lançá-la fora dela, na exterioridade do mundo, a palavra do mundo não dá a ver senão um aparecimento vazio, reduzido a um “aspecto” exterior, como então tal palavra podería pôr-nos em relação com a Vida – a Vida estranha ao mundo, que nunca se mostra nele, que não tem nenhum “aspecto” e nenhum “fora”? A Vida que não se separa jamais de si, mas que se estreita a si mesma na imediação de sua carne patética? A Vida que contém em si toda realidade, mas que, igualmente, exclui de si toda irrealidade? Pois a Vida se toca em cada ponto de seu ser, e ali onde ela se toca, ali onde ela é a vida em seu viver, não há passado, nem futuro, nem presente no sentido de um presente do mundo, nada de imaginário, nenhuma significação, nenhum “conteúdo de pensamento”, nada que não seja a plenitude do viver no sofrer e no fruir de sua autoafecção patética. Todas as intuições decisivas do cristianismo, que são as de uma fenomenologia da vida, se solidarizam. Elas desafiam a palavra do mundo a nos comunicar uma parcela da realidade da vida, se não é em forma de significação vazia. Ainda é preciso acrescentar que nem esta palavra nem o próprio mundo estão na origem desta significação. Esta não aparecería jamais no campo de nossa experiência, se aquilo de que ela é significação não nos fosse dado, ademais, em outra Palavra. E é esta a última intuição do cristianismo, de uma fenomenologia da vida.
Por que paradoxo a palavra do mundo, incapaz de produzir qualquer coisa real, foi tomada como protótipo e princípio da criação? Porque, por não criar aquilo de que fala, ela tem ao menos a propriedade de dá-lo a ver, se ele já existe – de produzir dele uma aparência, como no caso do poema, se ele não existe. Decisivo, em todo caso, para nosso propósito é o fato de a palavra do mundo ser tomada como o arquétipo de toda palavra, trate-se da palavra de Deus ou da dos homens. É a palavra que nomeia os pássaros, os peixes, as cores de suas asas ou de suas escamas, o fogo, as árvores, as águas, as vestes, os calçados, os alimentos, os excrementos, etc., que vai fazer-nos compreender a essência interior da Vida divina na medida em que esta é a Palavra original, o Logos de Vida. É esta [311] designação exterior das coisas que vai explicar-nos como a Palavra da Vida fala a cada um dos viventes e se faz ouvir por eles – o que significa então para eles ouvir a Palavra de Deus e, se esta se propõe como um chamado, qual é a natureza deste chamado e que gênero de resposta ele espera. E, se dizemos enfim que as Escrituras são a Palavra de Deus, essas Escrituras compostas de palavras e de significações como toda palavra humana, é, pois, à luz desta que a palavra corrente dos homens, que se trata de compreender a Palavra de Deus!
Na palavra do mundo, a relação desta palavra com o que ela diz é o próprio mundo, é a exterioridade. Essa é a razão por que tudo aquilo de que essa palavra fala lhe é exterior: é a árvore que é verde, o quadrado que tem quatro lados, etc. Exterior à palavra, o que ela diz é, por essa razão, diferente dela. A própria palavra que diz que a árvore é verde não é árvore, não é verde. E precisamente porque a palavra que faz ver é exterioridade que a diferença de tudo o que ela diz e faz ver lhe é exterior, é diferente dela. Do fato de a palavra que faz ver ser o mundo, a diferença, a exterioridade, resulta uma consequência decisiva, já encontrada por nós diversas vezes – e isso porque ela se enraiza na própria natureza da fenomenalidade. Esta [313] consequência é terrível: é a indiferença profunda desta palavra com respeito a tudo o que ela diz. Trate-se de uma árvore, de que esta árvore tenha folhas ou não, trate-se de uma figura geométrica e de que ela tenha tantos lados, trate-se de uma ferramenta quebrada, de uma cabra, de uma equação, de um hidroavião, de uma realidade ou de uma imagem, de uma prescrição ou de um conceito, pouco lhe importa. Desta indiferença da palavra do mundo, implicada na diferença em que ela mostra todas as coisas, o aspecto mais decisivo é este: jamais o que é dito na palavra do mundo, seu gênero, suas propriedades não resultam do gênero desta palavra, a saber, do modo de aparecer em que ela faz ver tudo o que faz ver. Jamais a natureza do que é desvelado depende da natureza do des-velamento, na medida em que este é o mundo. Essa é a razão por que, falta de penetrar no interior do que diz e não o compreendendo nunca em sua possibilidade interna, não compreendendo nada dele, a palavra do mundo se limita a uma simples constatação, a dizer e repetir: “Isso é”, “Há”.
(Michel Henry MHSV)