Mircea Eliade — História das Crenças e das Ideias Religiosas
Excertos da tradução em português de Roberto Cortes de Lacerda
O maniqueísmo é, antes de tudo, uma gnose, e, como tal, insere-se na grande corrente gnóstica que acabamos de apresentar. Mas, ao contrário dos outros fundadores de seitas, Mani esforçou-se por criar uma religião universal, acessível a todos, e que não se limitasse a um ensinamento esotérico reservado aos iniciados. Reconhece o valor de certas religiões anteriores, embora as considere incompletas. Por outro lado, proclama ter incorporado à sua Igreja a essência de todas as Escrituras e de todas as sabedorias: “Como um rio se junta a outro rio para formar um caudal poderoso, assim se acrescentaram os velhos livros às minhas Escrituras; e eles formaram uma grande Sabedoria, tal como não houve nas gerações precedentes” (Kephalia, CLIV, tradução francesa de H.-Ch. Puech, op cit., p. 69). Com efeito, Mani atribui um papel eminente a Jesus e converte em ideia sua a ideia do Paracleto; vai buscar na índia a teoria da transmigração das almas; sobretudo, retoma as ideias centrais iranianas, em primeiro lugar o dualismo Luz-Trevas, e o mito escatológico. O sincretismo era uma síndrome característica da época. No caso de Mani, era também uma necessidade tática. Pretendia estender a sua Igreja às duas extremidades do Império Persa. Viu-se, portanto, compelido a utilizar as linguagens religiosas familiares tanto às regiões orientais como às ocidentais. Entretanto, malgrado os elementos aparentemente heterogêneos, o maniqueísmo apresenta a unidade interna de uma criação poderosa e original.
Sendo uma religião universal, como o budismo e o cristianismo, o maniqueísmo era obrigado a ser, como essas duas Igrejas, uma religião missionária. Segundo Mani, deve o pregador “errar perpetuamente no mundo, pregando a doutrina e guiando os homens na Verdade”. Finalmente, e acomodando-se, ainda aqui, com o Zeitgeist, o maniqueísmo é uma “religião do Livro”. Com o objetivo de evitar as controvérsias e as heresias que tinham abalado o zoroastrismo, o budismo e o cristianismo, Mani redigiu, por sua vez, os sete tratados que constituem o cânone. Com exceção do primeiro, o Shâbuhra-gân, que compôs em médio persa, os outros foram escritos em siríaco ou em aramaico oriental. Dessa produção maciça muito pouca coisa se conservou, e unicamente em traduções; mas o número e a variedade das línguas em que esses fragmentos chegaram até nós (sogdiano, copta, turco, chinês etc.) proclamam o êxito sem precedente da pregação maniqueísta.
Como em todas as gnoses, e como também ocorre no Sâmkhya-Yoga e no budismo, o caminho para a libertação abre-se com uma análise rigorosa da condição humana. Simplesmente por viver nesta terra, isto é, por ser provido de uma existência encarnada, o homem sofre, o que equivale a dizer que é presa do Mal. A libertação só pode ser obtida através da gnose, a única verdadeira ciência, aquela que salva. De conformidade com a doutrina gnóstica, um Cosmo dominado pelo Mal não pode ser obra de Deus, transcendente e bom, mas do seu adversário. A existência do mundo pressupõe, pois, um estado anterior, pré-cósmico, tal como a condição patética, decaída, do homem supõe uma situação primordial beatífica. A essência da doutrina maniqueísta pode ser sintetizada em duas fórmulas: os dois princípios e os três momentos1. Ora, essas duas fórmulas constituem também o fundamento da religiosidade iraniana pós-gâ-thica. Poder-se-ia, portanto, dizer que o maniqueísmo é a expressão iraniana, na época sincretista, da gnose. De um lado, Mani reinterpretou certas concepções tradicionais iranianas; de outro lado, incorporou ao seu sistema muitos elementos de origens diversas (indiana, judeu-cristã, gnóstica).
Para os fiéis, o maniqueísmo não fornecia apenas uma moral e um método soteriológicos, mas também, e sobretudo, uma ciência total, absoluta. A salvação é o efeito inevitável da gnose. O conhecimento equivale a uma anamnese: o adepto reconhece-se como uma parcela de luz, portanto de natureza divina, porque existe consubstancialidade entre Deus e as almas. A ignorância é o resultado da mistura entre o espírito e o corpo, entre o espírito e a matéria (concepção dominante na índia e em outros lugares desde o século V a.C). No entanto, para Mani, como para todos os mestres gnósticos, a gnose redentora comportava ainda o conhecimento da história secreta (ou esquecida) do Cosmo. O adepto obtinha a salvação porque conhecia a origem do Universo, a causa da criação do homem, os métodos utilizados pelo Príncipe das Trevas e os contramétodos elaborados pelo Pai de Luz. A “explicação científica” de certos fenômenos cósmicos, em primeiro lugar as fases da lua, impressionava os contemporâneos. Com efeito, nb grande mito cosmogônico e escatológico elaborado por Mani, a Natureza e a Vida desempenham um papel importante: o drama da alma reflete-se na morfologia e no destino da vida universal.
NOTAS
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Segundo um texto de Tourfân, traduzido por Pelliot (ja, 1913, PP. 110 s.), quem quisesse “entrar na religião” devia saber que existem dois princípios, de naturezas absolutamente distintas, a Luz e a Escuridão, e três momentos: o momento anterior, quando o mundo ainda não viera a ser mundo e quando a Luz estava separada das Trevas; o momento mediano, intermediário, depois que as Trevas atacaram a região da Luz; e, finalmente, o momento ulterior, quando os dois princípios serão de novo separados. ↩