Corpo místico [MHE:364-367]

Mas essas são pressuposições fenomenológicas imediatas da doutrina do corpo místico de Cristo. Esse corpo as supõe a todas, com efeito, umas a título de relações fundadoras, outras a título de relações fundadas sobre as primeiras, encontrando nelas, ao mesmo tempo, sua origem e o princípio de seu desenvolvimento enquanto desenvolvimento imanente, cuja consistência invencível vem da força dessa origem que permanece nele. Assim se pode distinguir, de modo ao menos abstrato, fases sucessivas nessa construção ou nesse crescimento do corpo de Cristo, pois que há sempre, nele, um elemento que edifica e outro que é edificado.

O elemento que edifica, a “cabeça” desse corpo, é Cristo. Os membros são todos aqueles que, santificados e deificados nele e por ele, lhe pertencem doravante a ponto de se tornar partes desse próprio corpo, precisamente seus membros. Na medida em que é a encarnação real do Verbo, Cristo edifica, antes de tudo, cada Si transcendental vivente em sua Ipseidade originária, que é a da Vida absoluta; ele o une a ele mesmo. Dando cada Si a si mesmo, lhe dá o acrescer-se de si num processo de auto-crescimento contínuo que faz dele um devir (o contrário de uma “substância” ou de uma “coisa”) — processo que não é outro, em seu fundo, senão o da Vida absoluta. Nossa crítica da problemática husserliana da Impressão mostrou que, se “sempre novamente uma impressão está aí” no fluxo da consciência interna do tempo, isso jamais ocorre em virtude da própria Impressão. O processo patético da autodoação da Vida absoluta sempre está em ação, de maneira que esse fluxo, em si mesmo estranho a toda intencionalidade, não é linear nem indeterminado: impressional e carnal antes de tudo, pela Arquipassibilidade dessa Vida, e obedecendo a uma dicotomia afetiva evidente em seguida, na medida em que essa Arquipassibilidade se fenomenaliza nas tonalidades fenomenológicas originárias do Sofrer puro e do Fruir puro saído desse Sofrer. Assim, enfim, esse fluxo, esse desfile aparentemente absurdo de prazeres modestos e de pensamentos esmagadores é, secretamente, orientado para uma agonia, para a última passagem do último sofrimento do desespero à irrupção de uma alegria sem limites, tal como o atesta a Parusia dissimulada sobre o madeiro da Cruz.

A doação a si de cada Si transcendental, doação em que este é edificado interiormente como se acrescendo de si mesmo e, assim, de seu próprio devir, essa operação do Verbo, o Verbo a repete em cada Si transcendental concebível, passado, presente ou futuro. Assim, o corpo místico de Cristo se acresce indefinidamente de todos aqueles que são santificados na carne de Cristo. Nessa extensão potencialmente indefinida, o corpo místico de Cristo se constrói como “pessoa comum da humanidade” e “é por isso que ele é chamado o Novo Adão”.1 Como essa edificação não procede por acumulação de elementos adicionados — como “pedras” propriamente ditas num edifício construído por mãos de homens –, mas, ao contrário, como em Cristo é no Verbo que a edificação se produz, ela continua como uma edificação de Sis transcendentais, cada um dos quais, dado a si mesmo no Verbo, um com ele, se encontra, ao mesmo tempo, dado a si mesmo na mesma Vida única do mesmo Si único em que todos os outros Sis são dados a si mesmos. Assim, ele é um com eles todos em Cristo e, porque Cristo não é divisível — sendo a Vida única na qual se encontra o poder de viver eles tampouco são separados, mas, inversamente, um n’Ele, com Ele, eles são identicamente, n’Ele, um com todos os outros que estão igualmente n’Ele. É assim que a “pessoa universal” da humanidade, como dizem ainda os Padres, é precisamente essa “pessoa comum” de que fala Cirilo: a interioridade fenomenológica recíproca de todos os viventes no Si único da Vida absoluta, na interioridade fenomenológica recíproca desse Si e dessa Vida, do Pai e do Filho.

Como não se pode deixar de distinguir, nessa pessoa comum, o que edifica e o que é edificado, a cabeça e seu corpo, é preciso dizer, com Agostinho, que “a cabeça salva e o corpo é salvo”. Mas como o que edifica penetra inteiramente o que é edificado, como a cabeça e o corpo são um, como esse corpo composto de todos os viventes que vivem e se unem nele se tornam assim “o corpo todo inteiro” de Cristo, então é dado a esse corpo cumprir e concluir o que ainda não estava concluído em Cristo. Daí a extraordinária declaração de Paulo a respeito de seus próprios sofrimentos experimentados através de múltiplas tribulações e perseguições sofridas a serviço de Cristo: são sofrimentos que faltavam ainda ao corpo próprio de Cristo: “Completo o que falta às tribulações de Cristo em minha carne” [Colossenses 1,24]. É assim que compete a Paulo completar esse corpo, concluí-lo — no sentido radical, todavia, de que esses sofrimentos de Paulo são os sofrimentos do próprio Cristo, pertencendo ao corpo deste. Isso é possível porque Cristo permanece em seu corpo acrescido, em seu corpo “inteiro”, a que os Padres chamam também sua Igreja. Permanece nesse corpo “inteiro”, que é seu corpo místico como o que dá a cada um de seus membros a ele mesmo. O que dá a cada um de seus membros é, portanto, ele mesmo. A cada um, é verdade, não ocorre que viva o que o dá a ele mesmo como seu Deus. A maior parte dos homens vive à maneira dos idólatras: não se preocupam absolutamente com o poder que lhes dá a vida, não vivem nela senão para si mesmos, não se preocupam, em sua relação com as coisas e com os outros, senão consigo mesmos. Aos membros de seu corpo, a cada um daqueles que, dados a eles mesmos na autodoação do Verbo, não viverão senão da Vida infinita que se experimenta nesse Verbo, àqueles que se amam n’Ele de tal modo que é a Ele que amam em si, a Ele e a todos aqueles que estão nEle, a Vida eterna será dada de maneira que, nessa Vida tornada sua, sejam salvos.

 


  1. Cirilo, Traité sur Saint Jean, op. cit., livro I, cap. 9, p. 173.