hábito

hábito
VIDE
*Vocabulário da Filosofia


Excertos do livro “As sete forças da alma”, de Múcio Bezerra

Hábito: — Forma motora de memória, que se manifesta nas atividades facilitadas pela repetição: os atos complexos, constantemente repetidos, tendem a ter execução automática e precisa, uma vez provocados, e provocam-se ainda mais facilmente. Por extensão, também se designa por este nome a facilitação por repetição, e a tendência à automatização, de atividades puramente mentais. (Henri Piéron, Dicionário de Psicologia, Editora Globo, 1972) — Padrão de reação adquirido por aprendizagem social, relativamente estável, facilmente evocado e difícil de eliminar. A grande maioria dos hábitos são motores, mas o termo também se aplica, por generalização, a normas de comportamento. (Álvaro Cabral, Dicionário de Psicologia e Psicanálise, Editora Expressão e Cultura, 1971.)

Já em filosofia, faz-se a diferença entre hábito como costume e hábito como disposição. No primeiro sentido acha-se associado à palavra grega ethos, que tem por equivalente latina a forma consuetudo (consuetudinário é o que se funda na prática, no uso; há um Direito Consuetudinário), ambas com o significado de costume. No segundo sentido temos por equivalente a palavra grega eksis, de echein, ter; em latim: habere.

Hábito subentende uma disposição possuída pela alma de modo estável e permanente, que a faz conformar-se naturalmente com a razão. O hábito (eksis) difere da simples disposição (diathesis) pelo fato de ser uma disposição mais estável e mais durável. Diathesis, em si, quer dizer disposição de ânimo, sentimento. Quando Aristóteles empregava a palavra eksis fazia-o em seu sentido etimológico de ter, isto é, echein, como está exposto em Metafísica V, 10, 1022 b, 20: “Ter ou hábito significa uma disposição segundo a qual quem a tem está bem ou mal disposto quer em si mesmo, quer em relação a outro; por exemplo, a saúde é um hábito por ser uma disposição desta espécie. — Falamos de hábito quando existe algo de tal disposição; destarte, a própria excelência das partes é um hábito do ser inteiro”.

As ciências e as virtudes podem ser tomadas como exemplo de hábito no sentido de eksis. O calor e o frio, por exemplo, são disposições móveis e cambiantes, isto é, facilmente móveis. Só uma disposição dificilmente móvel, segundo Boécio, pode ser um verdadeiro hábito. Lembremos aqui as palavras de Abelardo, referindo-se a esta disposição: “O hábito é (pois) uma qualidade naturalmente gravada na alma; é uma qualidade conquistada pelo esforço e pela deliberação, e é dificilmente móvel.” (Dial. Inter Philos., Judaem et Christianum, P. L., t CLXXVIII, col. 1651 sq.)

Segundo Aristóteles, aquilo que se tem feito frequentemente (costume), inclina-se a fazer-se habitualmente. De uma maneira geral, tudo aquilo que se faz por costume, seja de natureza física, fisiológica, biológica, social é considerado como hábito. Diz ainda o filósofo:

“O hábito já é uma segunda natureza. O hábito assemelha-se de algum modo à natureza: “muitas vezes não está longe de sempre”. A natureza tem por objetivo o que acontece sempre; o hábito o que acontece muitas vezes.” (Retórica, pág. 82, Edições de Ouro, 1966)

Na primeira acepção, quando se diz que alguém tem o costume de ler a Bíblia, não se subentende um compromisso moral, mas a tendência a repetir o ato sem muita consciência do que está fazendo. Há pessoas que têm por costume repetir o que leem ou escutam à semelhança do papagaio, reproduzindo o fenômeno conhecido como psitacismo (de psittakos: papagaio).

Hábito no segundo sentido significa disposição, compromisso para agir deliberadamente. Por exemplo, o hábito de levantar-se de manhã cedo, o hábito de dizer a verdade, o hábito de observar os preceitos de Igreja não é a mesma coisa que fazê-lo por costume: por costume pode significar uma vez por outra, de vez em quando.

O hábito como o entendiam os antigos é um estado de adaptação a uma natureza ou a uma operação, e que, segundo Aristóteles, afetando intrinsecamente a potência, guarda o meio termo entre esta última e o ato.

NOTA: Potência e Ato. — “A potência é o determinável, o acabável, ou perfectível como tal; não é um ser, mas a capacidade real de ser”, Jacques Maritain, Introdução Geral à Filosofia, Agir, 198. — “O ato é o próprio ser no sentido próprio da palavra quanto à plenitude assim significada, ou ainda o acabado, o determinado ou o perfeito como tal”, Idem, Ibid.

A potência, digamos, é a possibilidade de ser isto ou aquilo, mas requer, para tanto, um tipo de ação que a ajude a fazer esta passagem no sentido do ato. A disposição necessária para este cometimento age, então, por intermédio do hábito que toma, assim, pelo domínio dos meios e economia do esforço o sentido de segunda natureza. A natureza, na verdade, tende espontaneamente para o bem, o hábito dirige esta tendência e a prática gera o hábito. O hábito dispõe, mas não obriga, porque, segundo São Tomás, está controlado pela vontade, sendo, pelo contrário, o instrumento que executa as próprias orientações desta última. O agir maquinal e inconsciente, o costume de fazer as coisas sempre da mesma maneira dá lugar ao marasmo mental conhecido como rotina. (O cognato inglês rote usa-se na expressão: by rote, com o sentido de inconscientemente, mecanicamente) O propósito, a disposição, compreende ação consciente, mesmo que se proceda, pelo domínio dos meios de execução, automaticamente, por hábito. Estar consciente significa estar atento para, inclusive, rever posições e corrigi-las, se necessário. — O hábito da economia, por exemplo, é um bom hábito; porém, levado ao exagero, pode resultar em avareza. As vezes um hábito pode tornar-se perigoso, quando se recusa a obedecer à vontade. Um bom comportamento, se perder a coerência com a realidade, pode redundar em mania. Daí a importância da vigilância. Portanto, só se pode considerar como hábito no sentido tomista a disposição estável, consciente e permanente de agir no sentido de um fim útil, e, por conseguinte, bom.

Sujeito do Hábito

Somos, ao nascer, um conjunto de potencialidades bio-psicológicas; e, apesar de todo o imenso complexo da ancestralidade psíquico-genética, (Há um corpo psíquico”, Cf. 1 Cor 1 5,44; 2,14) precisamos do meio social para tornar-nos humanos, de interação nos grupos onde se desenvolve a sociedade, a começar pelo fundamental: a família. Precisamos, pois, da devida socialização para que possamos reconhecer-nos no outro, no próximo, enriquecendo-nos como pessoa. A falta de interação, parcial ou total, com outros indivíduos humanos nos primeiros anos de vida, resulta no que se conhece como homo ferus (homem fera), de que constituem exemplos os meninos-lobos encontrados há tempo na Índia. Segundo o Sábio de Estagira: “Aquele que não pode viver em sociedade, ou que de nada precisa por bastar-se a si próprio, ou é um bruto ou um deus.” Assim, lançados no mundo como potencialidades humanas compostas de corpo e alma, somos, aí, como que uma tabuinha não escrita na qual é preciso imprimir um caráter de onde seja possível desenvolver uma personalidade equilibrada.

NOTA: “Pessoa é o indivíduo socializado, possuidor de status e de papéis” (Donald Pierson, Teoria e Pesquisa em Sociologia, Edições Melhoramentos). — Lembremos que status é palavra latina, com o sentido de repouso, imobilidade, postura, posição, etc. A ideia básica é de estabilidade, firmeza. Em sociologia estendeu-se na acepção técnica de posição de um indivíduo dentro de um ou mais grupos, ou de um grupo em relação a outro grupo, ou grupos (Pierson, op. cit.). — “Papel é a atividade da pessoa no grupo social a que pertence, é o aspecto dinâmico do status” (Idem, Ibid.).

NOTA: Aristóteles, A Política, I, § 11. Edições de Ouro. — A própria palavra Igreja, do grego ekklesia, significa assembleia, e é agora a comunidade dos fiéis. Mesmo os antigos monges (do grego monos, só, de onde monachos, solitário) que se retiravam para o deserto no intuito de viver a vida espiritual longe do tumulto das cidades, reuniram-se, depois, em cenóbios (do grego koinos, comum, e bios: vida), de onde o nome de cenobitas, que tiveram em S. Pacômio aquele que pôs em prática o ideal de vida comunitária dos religiosos. Homens de vida extraordinária como Santo Antão e São Bento vieram a tornar-se poderosos focos de espiritualidade cristã em torno dos quais floresciam comunidades religiosas. São Bento é, inclusive, considerado o padroeiro da Europa.

Um temperamento que não se tempera pela cultura permanente anti-social e pré-humano. E, como já se disse, aprender é adquirir hábitos. E hábito é aquilo que recebemos em nossa natureza, disposições que, naturalmente, não possuímos. Para adquiri-las precisamos, assim, ser diversamente afetados em nossa natureza.

Se a disposição afeta imediatamente a nossa natureza, recebe o nome de hábito de substância, como no caso da saúde, da beleza. Devemos considerar, porém, que sendo a alma a forma e a perfeição do corpo, não pode receber novas disposições (Pode-se dizer que forma é o que determina os corpos e os seres. — Um bloco de mármore é um pedaço de matéria amorfa — sem forma; se nele o artista esculpe a estátua de fulano, a matéria passa a ser determinada pela forma.). Pelo que tais hábitos só podem ter a sua sede no corpo ou na parte superior da sensibilidade, onde podem ter a sua essência.

Quando afeta a atividade o hábito denomina-se hábito de operação ou de ação. Não se deve esquecer que São Tomás só aceita o hábito de operação na medida em que o emprego dessas adaptações depende de uma vontade livre. Ora, sendo a vontade uma potência racional, pode, segundo a sua natureza tomar as direções A, B e C que corresponderão, na prática, às forças de execução desses propósitos, que em sua regularidade e eficácia têm o nome de hábitos.

Um homem, digamos, para servir-nos de uma linguagem figurativa, é a soma algébrica de todos os atos da sua existência. E esta soma é, sem dúvida, a expressão da sua medida, a que se antepõe ou um sinal de mais ou um sinal de menos. Daí a importância, no último ato da vida, de estar a alma em graça (estado positivo) e não em pecado (estado negativo). E, assim, em todos os momentos, a importância de ele estar atento àquilo que vai fazer (prudência), para que haja uma boa razão nas coisas inerentes ao agir humano. Pois se o homem quer dizer-se o senhor dos seus atos, deve estar consciente deles e da sua procedência. Alienar-se do convívio com a sociedade é desumanizar-se, assim como infringir as leis é voltar ao brutamontes das cavernas. A questão é manter o equilíbrio em meio às mais ameaçadoras oscilações; por isso é importante a conscientização do hábito no dia a dia, considerando-se que estamos numa época de controvérsias, paradoxos e dissolução dos costumes. Isto é a expressão dos fatos, que aí estão. E já aqui, adiantamos: a virtude é um hábito.

Não podemos negar o condicionamento e o hábito no trabalho de aprimoramento do homem cristão. Há quem diga, porém, que a verdade não pode ser involucrada em conceitos, que com o tempo findam cristalizados em preconceitos, etc. Nós, porém, o que acreditamos ser fundamental acima de tudo é atualizar o ser humano: fazê-lo mais presente a si mesmo, familiarizá-lo com as suas forças criadoras para que, não mais um estranho em sua própria casa, ele possa renovar-se pela consciência, libertando-se daqueles condicionamentos que são nocivos tanto para si quanto para a sociedade, o que o tornará mais compreensivo e mais capaz de amar com espírito cristão, tornando-se, enfim, cada vez mais de acordo com a sua natureza. E o essencial não faz acepção de pessoas nem se inclina para este ou para aquele lado, visto que: “Não é o muito saber que sacia e satisfaz a alma, mas o sentir e saborear as coisas internamente.” (Santo Inácio de Loiola, Exercícios Espirituais, 2a. pág. 391, Agir, 1968)

Somos estranhos animais que aprendemos e elaboramos conhecimento por causa da razão que há em nós. Nada, porém, transforma e renova tanto como o hábito excelente, a virtude, cuja eficácia é instrumento para aquele ser mais íntimo que existe em nós e que transcende todos os condicionamentos.

Pregar, assim, o descondicionamento absoluto é negar o próprio logos: a razão, visto que o humano em nós é social como base e trampolim para a realização e expressão do indivíduo, o ser interno, subjetivo em sua intimidade com o Divino, que é a plenitude de todos os indivíduos.

A boa educação, envolvendo corpo e alma, cabeça e coração é poderoso agente eliminador de tudo o que impede o desenvolvimento saudável do ser humano, ampliando a vida e a consciência; ainda que não se possa negar o paradoxo da vertigem para o mal, visto que o instrumento, sendo base para a expressão do humano, revela a índole e a ancestralidade da pessoa, podendo manifestar-se o paradoxo, mas sempre como excepção. E se há um peso ancestral em nossa alma (cf. Lam 5, 7), a ganga e o cascalho bruto não anulam a existência do filão de ouro espiritual nela escondido (“Nada há de oculto que não venha a ser revelado” (Mt 10,26).

NOTA: Educar, do latim educere: levar para fora, fazer sair, tirar de, desenvolver. — E, aqui, não abrimos mão dos valores evangélicos, sem os quais toda formação se fará exclusivamente para o mundo, dando inevitavelmente aqueles frutos que aí estão na sociedade, evidentes demais para que percamos tempo considerando-os.

Uma vida inconstante e sem coerência faz lembrar aquele servo mau que enterrou o talento do Senhor (cf. Mt 25,14-30). Diz o famoso gestalt-terapeuta Frederick Perls: Esqueça a mente e recobre os sentidos, (Gestalt-Terapia, Técnicas e Aplicações, Zahar Editores, 1973) o que na verdade é o mesmo que dizer: seja natural. Mas o que é ser natural senão ser em plenitude com a cabeça e com o coração, com o corpo e com a alma? E não é verdade que o aprendizado é um esquecimento bem feito? (Apud João de Souza Ferraz, Psicologia Humana, Edições Saraiva, 1954) Dizia Otto Maria Carpeaux que a cultura é aquilo que fica quando tudo foi esquecido. Não resta dúvida que os sentidos são fundamentais: eles são os postos avançados, as portas e as janelas de comunicação do psiquismo com o mundo das coisas concretas. É importantíssimo estar atento (“orai e vigiai” (Mt 26,41), centrar-se no aqui e agora, fazer-se presente a cada instante. Mas, na verdade, a atenção aqui não poderia ser humana, se além dos sentidos recobrados não houvesse aquele extrato cultural que é o que, realmente, possibilita a expressão de humano em nós, quer vivamos numa grande cidade quer no fundo do sertão, pois a cultura tanto pode estar no manejo de uma máquina sofisticada quanto no cabo de uma enxada para cavar a terra. O importante é que a casa esteja construída sobre a rocha (cf. Lc 6,48).

Enfim, nisto consiste a nossa vocação de cristãos e de ocidentais: saber como realizar o modelo que foi colocado à nossa frente como Caminho, Verdade e Vida. Cura, discernimento, salvação: eis os frutos da ascese, quando tudo aquilo que se aprendeu se dissolve na plenitude daquela Sabedoria que é um reflexo da luz eterna (Sab 7,26), e “embora sendo uma só, tudo pode; e permanecendo em si mesma, tudo renova” (Idem, 7,27), “e, quem a encontra, encontra a vida” (Prov. 8,35).