MARCION — ESTUDO DE JOHN O’GRADY
Excertos de seu livro “Heresy: Heretical Truth or Orthodox Error? a Study of Early Christian Heresies”, trad. José Antonio Ceschin
Durante todo o segundo século, enquanto algumas comunidades cristãs se estavam organizando em Igrejas e ajustando-se para se tornarem parte da Grande Igreja, outras acompanhavam certos líderes que defendiam pontos de vistas e crenças divergentes.
Já nos tempos de Paulo, os cristãos convertidos formavam seitas, cada uma levando o nome de um mestre específico: “(…) cada um de vós diz: ‘Eu sou de Paulo!’, ou ‘Eu sou de Apolo!’, ou “Eu sou de Cefas!’, ou ‘Eu sou de Cristo!’” (1Cor 1,12). Nos tempos pós-apostólicos, as divergências cresciam ainda mais. De fato, em algumas regiões devia ser bem difícil determinar quem eram os verdadeiros descendentes dos primeiros Mestres cristãos.
Um destes grupos divergentes era o dos marcionistas. A maior parte de tudo o que se sabe a respeito de suas crenças vem dos escritos de Irineu de Lião, que os atacou em seu livro Adversus Haereses.
Os marcionistas, ao contrário dos gnósticos, chegaram a formar uma Igreja. Eles afirmavam que era uma Igreja universal, baseada na autêntica instituição do Cristo. O número de membros do marcionismo cresceu depressa, a ponto de, em algumas regiões, superar o de membros da Grande Igreja. Irineu escreveu contra o que lhe parecia ser uma ameaça tão grande à unidade do cristianismo quanto o ensinamento dos gnósticos valentinianos. Os marcionistas são mostrados frequentemente como uma seita gnóstica mas, apesar de muitos dos seus princípios serem idênticos, o núcleo de sua crença era bem diferente. A meta do gnosticismo era ensinar, àqueles que conseguissem aprender, o verdadeiro Conhecimento que poderia levá-los às suas origens. O cristianismo era considerado uma dentre outras maneiras de fazer isso. Os marcionistas consideravam-se os únicos cristãos verdadeiros, e sua finalidade era pregar o cristianismo puro, o único caminho para alcançar a Salvação. Visavam uma forma pura e ascética de cristianismo — uma reação contra as ideias especulativas e “místicas” que, a seu ver, estavam sendo disseminadas por toda parte.
Marcion viveu entre cerca de 130 e 180 d.C. Seu sistema incorporava algumas das doutrinas gnósticas que havia estudado. Ele aceitava o princípio gnóstico do dualismo: a matéria era antagônica ao bem. Isto significava que o Deus Criador, o “Demiurgo”, era limitado e mau; e, portanto, sua criação material era intrinsecamente má.
Segundo o sistema de Marcion, o homem era criação desse Deus severo e cheio de ira, que lhe dera uma Lei impossível de observar, de modo que a criatura vivia sob uma maldição. O Deus Supremo da Bondade — o Princípio Primeiro — se teria apiedado do homem e mandado seu Filho para salvá-lo. Esta manifestação do Deus Supremo vestira-se do corpo fantasma de um homem de trinta e três anos de idade, que o “Demiurgo” acabara fazendo com que fosse crucificado. Seguindo as ideias gnósticas, tratava-se de um Cristo docético, um ser puramente espiritual, não sujeito ao nascimento e à morte dos homens comuns. O Cristo Ressuscitado teria acusado o “Demiurgo” de agir contra sua própria Lei. Assim, para corrigir as coisas, o “Demiurgo” tinha de entregar ao “Deus Bom” as almas dos redimidos que tinham morrido. Para atrair os vivos para Si, o “Deus Bom” teria criado Paulo Apostolo, o único que compreendia a doutrina do Deus do Amor e do Deus da Lei.
Marcion afirmava que somente Paulo conhecia e observava as verdadeiras tradições de Cristo. Comungava desta crença com muitas das escolas gnósticas, que consideravam Paulo o seu fundador, que tinha formulado uma antítese entre a servidão da Lei e a liberdade da graça, interpretada por Marcion como uma antítese entre a justiça do Deus do Velho Testamento (identificado como o “Demiurgo”), e o amor do Bom e Supremo Deus.
Nessa época, a “Grande Igreja”, compreendendo aquelas Igrejas que aceitavam a liderança de Roma e uma tradição apostólica comum, ainda carecia de um cânon completamente estabelecido de escrituras, apesar de contar com sua coleção de textos apostólicos, entre os quais incluíam-se as epístolas de Paulo, assim como, é claro, os quatro Evangelhos. Seguindo o hábito desde os primeiros tempos, as comunidades cristãs também liam extratos da Lei e dos Profetas.
Marcion devia ter um cânon estabelecido de escrituras. Em sua igreja, lia-se o Evangelho da Verdade, as Epístolas de Paulo (excluindo-se as cartas pastorais) e, dos quatro Evangelhos, uma versão editada de Lucas. Em ICor 11, 23-26, Paulo mostra ter recebido uma narrativa da Ultima Ceia de parte “do Senhor”. A narrativa mais semelhante a esta encontra-se no Evangelho de Lucas, o que convenceu Marcion de que aquele Evangelho teria sido escrito por Paulo.
A finalidade principal da coleção de escrituras dos marcionistas era enfatizar o amor e a misericórdia de Deus, que consideravam melhor refletida no Evangelho de Lucas. Afirmavam que as escrituras do Velho Testamento, lidas nas Igrejas “católicas”, opunham-se ao ensinamento da misericórdia que, para eles, era o sinal do autêntico cristianismo. Qualquer coisa encontrada no Evangelho de Lucas ou nas cartas de Paulo, que para eles fossem desvios de sua concepção dos ensinamentos cristãos, atribuíram a falsificações introduzidas pelos judeus-cristãos e pelos apóstolos que se opunham a Paulo.
Marcion acreditava que Deus o havia preparado para tornar a pregar o verdadeiro Evangelho e para levar a Igreja a compreender de novo os ensinamentos de Paulo. O homem teria de colocar sua confiança no “Deus da Bondade” e renunciar ao “Demiurgo”. Esta renúncia ao “Deus da Matéria” levou à rejeição de tudo que dissesse respeito à carne, assim como a um rígido ascetismo. Os marcionistas, da mesma forma que os gnósticos, faziam uma divisão entre os “perfeitos” e outros fiéis. Para eles, os perfeitos eram aqueles que haviam sido batizados e que, a partir de então, tinham de manter o celibato. Os cristãos comuns podiam viver uma vida normal de casados, para serem batizados apenas no momento de sua morte. Esta doutrina marcionista reapareceria mais tarde, em determinadas heresias medievais, onde se faziam distinções semelhantes entre os escalões dos seus seguidores.
Não era apenas a crença marcionista na rejeição da matéria e, portanto, na necessária rejeição de toda a indulgência carnal, que fazia surgir estas hierarquias. Havia também, assim como em muitas outras heresias, o sentimento de que as exigências do cristianismo eram tão grandes que se achavam muito acima daquilo que a maior parte das pessoas conseguia alcançar. Os marcionistas usavam seu sistema hierárquico como uma solução para este problema, da mesma forma que os gnósticos o haviam feito.
Numa aparente contradição com a rigidez de suas regras hierárquicas, a Igreja marcionista insistia que só a fé no amor de Deus era necessária para a Salvação, pois a humanidade fora libertada das leis fixadas pelo Deus do Velho Testamento. Esta ênfase num Deus misericordioso e cheio de amor, ao contrário de um Deus de ira e justiça, era o elemento que atraía números cada vez maiores de convertidos para junto dos marcionistas. As comunidades marcionistas espalhavam-se com rapidez, especialmente na parte oriental do Império Romano, onde igrejas marcionistas podiam ser encontradas durante todo o segundo século e até o início do terceiro. Mas, ao final do terceiro século, o marcionismo acabou de vez ou foi engolido por outras seitas.
Apesar de algumas doutrinas marcionistas terem exercido uma certa influência sobre os ensinamentos cristãos dos tempos posteriores, os elementos que tornaram a heresia marcionista importante foram, primordialmente, o elevado número de seus adeptos e o tamanho de sua Igreja. De fato, durante o segundo século, não se podia saber qual das duas acabaria se tornando a Igreja continuadora do cristianismo: a Grande Igreja ou o marcionismo.
No entanto, olhando para trás através da História, vemos que o sistema marcionista estava cheio de ilogicidades e de simplificações exageradas. As numerosas ilogicidades fizeram com que sua Igreja se dividisse em facções. Tertuliano, escrevendo algumas décadas depois de Irineu, disse: “Os marcionistas fazem igrejas da mesma forma que as vespas fazem seus ninhos” (Tertuliano, Adv. Marc.). A proliferação e a divisão talvez sejam os sinais de distinção daquilo que de fato constitui uma heresia.