Hans Jonas — Religião Gnóstica
Mundos e Eones (ou Eões)
Dentro da noção de mundo já demonstrada é natural que a referência gnóstica seja no plural “mundos”. A expressão “os mundos” denota uma cadeia de domínios de poder fechados, divisões de um sistema cósmico muito maior, através dos quais a Vida tem de passar em seu caminho, todos igualmente “estranhos” a ela. Somente perdendo seu status de totalidade, se tornando particularizado, e ao mesmo tempo demonizado, o conceito de “mundo” veio a admitir a pluralidade. Podemos também dizer que “mundo” denota um coletivo ao invés de uma unidade, uma família demoníaca ao invés de um único indivíduo. A pluralidade denota também o aspecto labiríntico do mundo: nos mundos a alma perde seu caminho e vagueia, e quando tenta escapar apenas passa de um mundo para outro que ainda assim é um mundo. Esta multiplicidade de sistemas demoníacos às quais a vida não redimida foi banida é um tema de muitos ensinamentos gnósticos. Aos “mundos” do Mandeísmo corresponde os “eones do Gnosticismo Helenístico. Normalmente existem sete ou doze (correspondendo ao número de planetas ou de signos do Zodíaco), mas em alguns sistemas a pluralidade prolifera a dimensões assustadoras, até 365 “céus” ou “espaços inumeráveis, “mistérios” (aqui topológicos), e “eones” da Pistis Sophia. Através de todos eles, representando muitos graus de separação da luz, a “Vida” deve passar a fim de escapar.
Vede, ó criança, através de quantos corpos (elementos?), quantas ordens de demônios, quantas concatenações e revoluções de estrelas, devemos trabalhar (praktike) a fim de nos aproximarmos do uno e único Deus. (Corpus Hermeticum IV, 8)
Deve ser entendido aqui mesmo quando não expresso que o papel destas forças interventoras é adverso e obstrutivo: com a extensão espacial elas simbolizam ao mesmo tempo o aprisionador e antidivino poder deste mundo. “O caminho a seguir é longo e sem fim” (Ginza 433); Quão amplos os limites destes mundos de escuridão! (Ginza 155); Tendo uma vez vagado no labirinto dos males, a desprezível (Alma) não acha saída… busca escapar do caos amargo, e não sabe como deve atravessar. (Salmo Naasseno, Hipólito V 10, 2).
Vagando certa vez no labirinto dos males,
A (Alma) desgraçada não encontra saída…
Busca escapar do amargo caos,
E não sabe como atravessar. (Salmo Naasseno, citado em Hipólito de Roma V.10.2)
Aparte toda personificação, todo o espaço no qual a vida encontra-se tem uma caráter espiritual malevolente, e os “demônios” eles mesmo são tanto reinos espaciais como pessoas. Superá-los é a mesma coisa que atravessá-los, e quebrando seus limites esta passagem ao mesmo tempo quebra seu poder e alcança a liberação da magia de sua esfera. Assim mesmo em seu papel de redentor a Vida nos escritos mandeanos diz de si mesma que “vagueou através dos mundos”: ou como Jesus é feito dizer no Salmo Naasseno, “Todos os mundos devo atravessar, todos os mistérios descerrar”.
Este é o aspecto espacial da concepção. Não menos demonizada é a dimensão tempo da cósmica existência da vida, que também é representada como uma ordem de poderes quase-pessoais (Eões. Sua qualidade, como a do espaço do mundo, reflete a experiência básica de estrangeirice e exílio. Aqui também encontramos a pluralidade lá observada: séries de idades estendem-se entre a alma e sua meta, e sua mera numeração expressa o cativeiro que o cosmo enquanto princípio tem sobre seus cativos. Aqui também, escapar é alcançado somente através deles. Assim o caminho da salvação conduz através da ordem temporal das “gerações”: através de cadeias de gerações enumeradas a Vida transcendente entra o mundo, estadia nele, suporta sua aparente infinita duração, e somente através deste caminho longo e laborioso, com memória perdida e resgatada, pode ela preencher seu destino. Isto explica a fórmula impressionante “mundos e gerações” que constantemente ocorre nos escritos mandeanos: “Vaguei através de mundos e gerações diz o redentor. Para a alma não redimida (que pode ser aquela do próprio redentor), esta perspectiva de tempo é uma fonte de angústia. O terror da vastidão dos espaços cósmicos é igualado pelo terror dos tempos que devem ser suportados: “Quanto tempo já suportei e habitei no mundo!”.