[…] Toda forma de organização põe em jogo um agir e repousa sobre ele. O próprio agir implica um Eu Posso sem o qual nenhum poder está em condições de se exercer, sem o qual, portanto, nenhuma ação é possível. Este Eu Posso que se [375] apoia sobre o ego reconduz assim a um eu, a um Si e finalmente à Ipseidade da Vida absoluta – a Cristo/Deus. Tais eram as pressuposições da teoria cristã do agir. Por um lado, o agir só é possível na vida, não há senão um agir vivente e, se se trata, por exemplo, do trabalho, um trabalho vivente. O agir, por outro lado, não se desdobra somente na Vida, mas é desta que recebe toda motivação possível. Da vida que não é somente a do ego, mas deesta Vida absoluta a que toda vida particular, todo vivente e todo Si vivente devem a viver. É da fundação de todo agir concreto particular no agir da Vida absoluta o que dá o Si a ele mesmo que resulta o princípio da ética cristã. Como ética da renúncia por um lado, isto é, da possibilidade de reencontrar, na relação do ego consigo, o poder que o relaciona a si, o agir da Vida absoluta. Como ética da re-ge(ne)ração e do segundo nascimento depois, a qual consiste, ao reencontrar em si este agir da Vida absoluta, em viver doravante desta vida nova que é a vida eterna.
Em que se converte o agir sob o reino do Anticristo? Na medida em que a negação do Primeiro Si acarreta a de todo Si concebível, é a própria possibilidade de agir que ela destrói. O que seria, com efeito, um agir que não trouxesse em si um Si vivente, que não se experimentasse a si mesmo e não se revelasse a si na autorrevelação da vida? Um processo exterior cego, análogo a todos os que compõem a trama do universo. Se se trata, portanto, de organizar este, de transformá-lo, que saber servirá de suporte a esta transformação, se já não pode ser, como no passado da humanidade, a experiência que a vida faz de si no esforço patético de seu agir vivente? Seria o saber da ciência galileana. A transformação do universo material que se apoia sobre o conhecimento físico-matemático deste universo é a técnica moderna. Trata-se pois de pôr em lugar, de pôr em jogo dispositivos materiais objetivos tomados deste universo e de seus processos internos, dispositivos construídos e elaborados à luz da ciência galileana. Ou ainda: a técnica (moderna, galileana – não a técnica tradicional repousando sobre o corpo vivente e por [376] essência subjetiva) é a autotransformação do universo material graças ao conhecimento físico-matemático deste mesmo universo. De modo que, no sistema desta autotransformação, já não há nada vivente: nem “homem”, nem eu, nem Si, nem Filho, nem Arqui-Filho, nem Deus – nenhuma vida de tipo algum. De forma que cada elemento ou cada constituinte deste sistema lhe repete a estrutura. Uma técnica por princípio estranha à vida e que repousa sobre sua exclusão, tal é a essência do agir na época do Anticristo, quando a possibilidade do Próprio Si vivente foi negada.
O pôr em marcha semelhante técnica acarreta consequências visíveis por todas as partes hoje em dia, a ponto de se pode dizer que o mundo moderno é sua vitrine. Tais consequências são necessárias na medida em que não fazem precisamente senão repetir a pressuposição do sistema que estende seu reino ao planeta inteiro, semeando, em todos os lugares, a desolação e a ruína. A pressuposição é, com a destruição do Si vivente, sua eliminação de toda forma de agir. É ao mesmo tempo a destruição deste – na medida em que não há agir que não seja um agir vivente – e sua substituição precisamente pela técnica moderna, esse conjunto de processos materiais objetivos em si mesmos estranhos a toda e qualquer vida.
Uma das formas tradicionais do agir consiste no processo de produção de bens materiais necessários à existência humana e presente por esta razão no fundo de qualquer sociedade. O que advém hoje a este processo é a ilustração trágica, e assim a prova, da expulsão do Si vivente do agir humano, com todas as consequências desta expulsão. Que estas consequências – a destruição do Si vivente e, assim, do homem – não sejam senão uma repetição ou o reaparecimento da pressuposição de um sistema que não é somente o da economia, mas do mundo moderno inteiro, aí está o que é muito evidente. A “exclusão”, notadamente a exclusão de um número sempre crescente de trabalhadores do circuito econômico e social – ou seja, a expulsão do Si vivente do agir humano de que acabamos de falar –, não é um episódio infeliz da extensão insensata de um [377] capitalismo puro e duro, indiferente aos homens. A extensão deste capitalismo sem freio vai de par com sua destruição interior por efeito do hiperdesenvolvimento da técnica moderna. Diminuindo sem cessar o trabalho vivente, a técnica esgota inexoravelmente a fonte da riqueza econômica, isto é, do próprio capital, e o destrói. Mas nada de tudo isso teria sido possível se o homem verdadeiro, o Si transcendental gerado na Ipseidade da Vida absoluta, não tivesse sido previamente eliminado do olhar do Ocidente e da organização do mundo posto em lugar por este olhar.
Se o sistema da técnica que varre o homem da superfície da Terra procede da negação do Si transcendental do homem, isto é, afinal de contas, do Anticristo, e se o Anticristo é o mentiroso, se é preciso gritar hoje como no tempo de João: “Quem é o mentiroso senão aquele que nega que Jesus é o Cristo?”, por que então tal sistema que deixa ver um pouco mais cada dia seus estragos deve ser dito, ademais, “mentiroso”? (Michel Henry MHSV)