Borella
Entretanto, por mais total que seja a inversão, ela não pode ir tão longe a ponto de negar completamente as relações normais entre essas três esferas. A dimensão espiritual do homem que o envolvia como um nimbo de glória, ou seja, que irradiava a deiformidade de sua natureza, essa dimensão não desapareceu; foi reduzida a um traço pontual, portanto a um germe, ou mesmo a um estado virtual: o homem não possui mais sua atualidade (será necessária a vinda de Cristo para abrir a porta do nosso céu interior). O homem é então, por natureza, uma alma viva, e é essa natureza real que transmite a seus descendentes, tudo o que vai além dessa natureza psíquica pertencente ao sobrenatural. Além disso, embora o corpo envolva a alma, não deixou, e por boas razões, de ser apenas uma modalidade dela. Em vez de um corpo, deveríamos falar de um corpo psíquico, ou um corpo-alma.
A língua latina nos oferece uma possibilidade interessante a esse respeito. A palavra alma tem dois equivalentes em latim: anima e animus. Parece-nos que a palavra anima abrange muito bem todas as funções psíquicas que estão relacionadas, direta ou indiretamente, ao corpo, e das quais o corpo, verdadeiramente, é absolutamente inseparável. Basicamente, estamos falando do que é conhecido na tradição ocidental como a alma vegetativa (simbolizada na Bíblia pelo cinturão de folhas de figueira) e a alma animal ou sensitiva (simbolizada pelas túnicas de pele). Portanto, vamos nos referir a isso como o par anima-corpus.
Entretanto, embora a anima esteja ligada mais ou menos diretamente ao corpo, ela inclui funções que são em si mesmas puramente psíquicas; essas são as funções afetivas: sentimentos, paixões, emoções. Elas pertencem à alma sensível (ou animal) — a afetividade existe nos mamíferos superiores — e estão ligadas ao corpo, ou melhor, o corpo participa de sua manifestação ao realizá-las simbolicamente em seu próprio plano, mas elas não são corpóreas. Além disso, no homem, elas constituem o que há de mais propriamente psíquico; apresentam à consciência a psique em sua atividade essencial. Em sua natureza primária, a psique é tensão, uma tendência ao movimento, impulso, vida. Essa natureza dinâmica da psique não é, entretanto, pura atividade. Pelo contrário, essa atividade é uma reatividade, essa ação é uma reação. A substância anímica é, portanto, definida por tensões orientadas de acordo com a bipolaridade ação-paixão; sua própria atividade pressupõe uma passividade primária; a alma só age porque primeiro foi tocada, alcançada. É claro que ela reage de acordo com a natureza das forças dentro dela; mas essas forças só são movidas ou liberadas porque a alma primeiro experimenta a si mesma como eminentemente “tocável”, ameaçada, exposta, móvel, submissa, em outras palavras, como capaz de ser “afetada”1. Uma vez que a alma é essencialmente afetiva, segue-se que a quietude, a paz e a serenidade não podem ser encontrados em seu nível2.
André Allard
L’ILLUMINATION DU COEUR
Anima, o psiquismo inferior compreende a alma passional e a alma dita «vegetativa» assim que, por outro lado, isto que os modernos entendem por subconsciente. Sobre as correspondências simbólicas «coração-sol-mente» e «cérebro-lua-mental», grupos representados alquimicamente pelo ouro e pela prata, vide René Guénon Éter no Coração.
John Caputo
Em O que é chamado de pensamento? [GA8] Heidegger parece indicar que não está preparado para admitir que a concepção de Eckhart da “pequena centelha da alma” (Seelenfünklein) transcende de fato completamente a noção do homem como um “ser vivo” dotado de uma “diferença específica” de “razão”, ou “pensamento”:
No entanto, ainda faz uma diferença decisiva se esta característica do ser vivo “homem” é meramente incluída nas nossas considerações como uma marca distintiva acrescentada ao ser vivo – ou se esta relação com o que é, porque é a característica básica da natureza humana, é dada seu papel decisivo como padrão. (GA8:WHD, 96/149)
Não basta falar do homem como anima – um ser possuidor de um princípio de vida, pois todo ser vivo (“animal”) tem anima. Mas também não é suficiente, diz Heidegger, falar do homem como animus. Ora, animus significa, segundo Heidegger,
. . . aquele esforço interno da natureza humana que sempre é determinado e sintonizado com o que é. A palavra latina animus também pode ser traduzida pela palavra “alma”. “Alma”, neste caso, não significa o princípio da vida, mas aquilo em que o espírito tem a sua existência, o espírito do espírito [cf. Quint, 319,10/Ev., 33], a “centelha” da alma de Meister Eckhart. (GA8:WHD, 96/149)
Mesmo Meister Eckhart, na opinião de Heidegger, não consegue compreender que o homem é básica e fundamentalmente uma relação com o que é e que isto não é simplesmente algo “acrescentado” ao homem.
Heidegger está, acredito, enganado sobre isso. Para Eckhart, a “pequena centelha” ou “base” da alma refere-se à “fonte” e “raiz” mais íntima (Wurzel: Quint, 318,17/Ev., 32) do ser da alma. Não é algo acrescentado à alma, mas aquilo de que a alma tira a sua vida. Esta é a força da própria palavra “Grund”. Além disso, a pequena centelha da alma não é de forma alguma uma “marca distintiva” da alma porque significa aquele reino da alma onde não existem “marcas distintivas” ou “nomes”. A base da alma não é “coisa”; não pertence a nenhuma “classe” de coisas e não tem nada a ver com qualquer tipo de “diferença específica”. Na verdade, “não tem nada a ver com nada” de gênero, espécie ou diferença. A verdade simples é que, com a sua noção de “pequena centelha da alma”, Eckhart concebeu o homem não como homem, mas como uma relação pura com o Ser, que para Eckhart é Deus.
Os psicólogos acham que o medo é a emoção fundamental. Há alguma verdade nessa tese, no sentido de que a alma humana se torna consciente de si mesma como algo que pode ser “afetado”. A resposta a essa consciência é a raiva, que é a forma primitiva da dinâmica psíquica. A virtude correspondente, ou seja, a resposta bem-sucedida, a alma dominada em seu impulso inicial por um esforço especificamente humano, é a coragem. De fato, há homem sempre que há um esforço para dominar um movimento natural. Portanto, temos a tríade: medo, raiva, coragem, que define o homem em seu nível mais natural. É notável notar que o que chamamos de afetividade, Platão chama de = alma irascível, e que a coragem é dita em grego: andreia. Ora, andreia é, por excelência, a virtude do homem (andros em grego), um pouco como se estivéssemos dizendo “humanidade”; cf. o latim vir (homem verdadeiramente homem) e o francês virilité. ↩
Quando dizemos que a alma está sob tensão, queremos dizer a alma caída. Como a queda é uma inversão, em muitos aspectos, segue-se que a substância anímica do homem principial não é a tensão, mas a paz, simbolizada pela superfície da água parada, ou seja, a reabsorção das tensões em um equilíbrio indiferenciado ↩