Paul Nothomb

Dilúvio — AS ÁGUAS BAIXAM…

Por duas vezes, Noé “vê” as águas diminuir e descobrir a “superfície da adama” (8,8 e 8,13) quando o texto vem a indicar que se trata da superfície da terra (8,7 e 8,13).

Logo saído da arca, Noé sai da Bíblia das Origens para inaugurar a “Bíblia religiosa” que a segue infelizmente em nossas bíblias. Oferece a Deus um sacrifício sangrento cujo odor “noáquico” não lhe é certamente agradável, como queira dizer a tradição. E é neste momento onde tem mais razões que jamais de desesperar do Homem, que unicamente Noé e sua família ditos incarnar ainda sobre a terra e representar a última chance, que YHWH aí renuncia explicitamente “falando a seu coração”.

O pretendido “odor agradável” sentido por YHWH e que parece aprovar os holocaustos de animais que Noé lhe oferece ao sair da arca, se escreve em hebreu NYHH, palavra que é pela primeira vez atestada na Bíblia (8,21) e a qual dará constantemente referência seu emprego na linguagem sacerdotal dos sacrifícios, bem posterior. é de fato o sentido que lhe deram os padres. Se se confia todavia em sua raiz, que é NWH (o Y e o W são intercambiáveis em hebreu e as duplicação da última consoante é uma forma de derivação corrente) apercebe-se que ela é aquela do nome de Noé, que se escreve NH (pronunciado “Noah”) que constitui o particípio presente do verbo NWH que quer dizer “se repousar”. Mas o contexto, que é aquele da história de Noé, me parece indicar que este NYHH, sempre e exclusivamente empregado em seguida para qualificar um sacrifício sangrento a exemplo daquele de Noé, deriva do mesmo nome de seu inventor, e eis porque traduzo “odor noáquico” e não “odor agradável” como a tradição e nossas bíblias.

E YHWH disse em seu coração: não aliviarei mais a adama por causa do Homem pois a concepção do coração do homem é má desde sua juventude, não mais golpearei toda vida mortal como deixei fazer”.

Este versículo (8,21) é quase impossível de traduzir em sua riqueza de nuances e de interpretações possíveis em hebreu. Assim o verbo que traduzo por “aliviar” é traduzido nas nossas bíblias por “maldizer”. É QLL cuja raiz quer dizer “ser leve” mas a “leveza” se tornando uma noção pejorativa na Bíblia histórica (onde a glória KBD deriva da raiz “ser pesado”) o verbo tomou mais tarde o segundo sentido de “maldizer”. Escolhi o primeiro sentido, na medida que existe aqui uma referência a 3,17 onde Deus no Éden constata que a adama)) é maldita (por causa de ti, diz ele ao Homem) e onde não é QLL que é empregado mas ‘RR, que só tem o sentido de “maldizer”’A preposição B’BWR (pronunciada baavour”) que traduzo por “por causa de” pode significar também “para”. É a mesma que é também empregada em 3,17. Quanto à conjunção que traduzo por “pois” pode querer dizer igualmente “qualquer”, e aqui isto muda notavelmente na frase. É a conjunção KY.

O que traduzo por “toda vida mortal” é KL HY (pronunciado “kol-hay”).

Há aqui na mesma frase a oposição entre o Homem (“haadam”) e o homem (“adam”) como em 6.7, mas ela é menos clara pois em razão da regra do “estado construído” “adam” porta aqui o artigo definindo que caracteriza “haadam”, mas se relaciona a “lev” (o coração) que é o primeiro termo desta “estado construído”. É impossível em hebreu bíblico evitar este aparente contra-senso e pôr o artigo definido diante de “lev” ao qual no entanto ele se relaciona.

“O coração do homem é mau desde sua juventude”. Não desde seu nascimento, nem desde sua infância. Não se trata de “pecado original” hereditário, mas de cultura e de linguagem transmitidas antes de ser adquiridas, e que reconstrói de geração e geração a Irrealidade.

Aprendemos assim que até o dilúvio, sem entravar em nada a liberdade do Homem, Deus não intervém menos em seu favor aliviando o peso da adama, quer dizer da condição humana que escolheu. E se pensa na extrema longevidade dos primeiros descendentes de Adão e Adão ele mesmo. A partir do dilúvio isto vai com efeito mudar. A morte fará mais rápido sua obra mas ao mesmo tempo Deus se engaja a não mais dela se servir como um meio de acabar com o Homem. Não haverá mais dilúvio, as estações seguirão seu curso “enquanto a terra subsistirá”, e não é Deus em todo caso que o impedirá, que a poluirá, que a destruirá, e que provocará as futuras catástrofes ditas “naturais”. Doravante “por causa do Homem” os homens suportarão todas as consequências de sua loucura. E talvez deste fato, se despertarão mais rápido…

É portanto quando mesmo renuncia definitivamente a se desesperar do Homem que Deus decide de se desinteressar dos homens. Por causa do Homem que está neles e que lhes pertence a cada um de reconstituir a partir da “imagem de deus” que herdou de Adão por Seth. Não é aliviando a adama que Deus ajudará o Homem a se fazer. Uma última vez, no início da Bíblia religiosa onde é dito concluir com Noé a primeira das “alianças” da História dita “santa”, deus relembra esta “imagem” na qual ele permite ao ((Homem de “se fazer”, o que começa pela interdição de versar o sangue.

Roberto Pla

Roberto Pla: Evangelho de Tomé – Logion 11
Assim como o fogo o elemento paralelo do mundo espiritual, é a água o elemento em que se desenvolve a vida da alma. Por isso, aquelas águas que durante uma quarentena descarregaram sobre a terra segundo o relato do Dilúvio, são figura universal do batismo. As águas de abaixo, aquelas que se precipitam desde a vertente inferior do firmamento, levavam um desígnio purificador igual ao das águas do Jordão transitadas pelo Batista para imersão. Ambas se empregam em lavar os pensamentos que sobrevêm ao coração dos homens.

Antonio Orbe

Antonio Orbe: ANTROPOLOGIA DE SÃO IRINEU

A história da exegese das duas criações se presta a curiosas reflexões. Sem sair de Orígenes, as duas criações do homem interior (Gen 1,26s) e do homem exterior (Gen 2,7) ofereciam uma estranha correspondência com as duas espécies de “água”: água superior ao firmamento e a água inferior (Gen, 1,6s). O problema implicitamente planteado por semelhante correlação salta à vista. A água superior ao firmamento se identifica, de um lado, com o intelecto ou nous feito à imagem e semelhança no sexto dia (segundo Gen 1,26s); por outro lado, da água inferior, coincide com o homem modelado (segundo Gen 2,7). Que cronologia prevalece? É originalmente atendível a espontânea cronologia de Moisés?

Há que situar ou não na eternidade a criação do homem interior, ou seu equivalente o mundo noético, Orígenes mantém sua relativa prioridade frente ao homem sensível ou exterior. Entre a água superior e a inferior ao firmamento há que abrir o parênteses do pecado e da distribuição, por categorias, dos racionais. A dupla criação subsiste, separada cronologicamente com o hiato que medeia entre a aparição do cosmos noético e a do mundo sensível, e espacialmente ratificada pelo firmamento.

Jean Borella

Jean Borella: OS TRÊS MUNDOS

A doutrina tradicional dos três mundos se apresenta também na Bíblia da Revelação judeu-cristã. Lembremos que o relato do Segundo Dia no Gênesis descreve simbolicamente não somente a criação do mundo corporal, mas também dos dois outros mundos, o que comentadores modernos não parecem duvidar. As «águas superiores» representam então o mundo das realidades espirituais, e as «águas inferiores» aquele das realidades sutis e corporais, Com efeito, estas «águas inferiores» são em seguida separadas, horizontalmente, em mar mundo sutil e em terra mundo corporal.