Jerônimo Carta 73

JERÔNIMOMELQUISEDEQUE — CARTA 73

1. Enviaste-me uma obra anônima, e não sei se foste tu quem tirou o nome da capa, ou quem a escreveu não quis se confessar autor para evitar o estorvo da discussão. Li a obra e vi que a famosíssima questão sobre o sumo sacerdote Melquisedeque é levada a tal extremo, que o autor, com todo tipo de argumentos, pretende provar que quem abençoou o tão grande patriarca tinha que ser de uma natureza superior, e não podia ser tido por homem. Ao final atreve-se a dizer que quem saiu ao encontro de Abraão foi o Espírito Santo, e Ele mesmo foi quem se deixou ver na figura de homem. De que modo o Espírito Santo pôde oferecer o pão e o vinho e aceitar dízimos do saque que Abraão trazia em consequência da derrota dos quatro reis, são pontos que o autor não quis tocar. Pedes que te conteste o que me parece sobre o escritor e sobre a própria questão. Confesso que quis reservar meu parecer e não meter-me em um tema perigoso e polêmico, no que diga, diga o que disser, vou ter contraditores, Mas, ao reler tua carta e ver que na última página me insiste com rogos urgentes para que não despreze a quem suplica, decidi-me a pesquisar nos livros antigos e ver o que diz cada um deles, e assim responder-te como quem se aconselha com muitos.

2. Imediatamente, no frontispício do Gênesis, dei com a primeira homilia de Orígenes sobre Melquisedeque, onde após múltiplas especulações vem dizer que Melquisedeque é um anjo, e quase com os mesmos argumentos com que teu autor fala do Espírito Santo e fala das potestades celestiais. Passei para Dídimo seu discípulo, e vi que seguia pé ante pé a opinião do mestre. Dirigi-me para Hipólito, Irineu, Eusébio de Cesareia e o de Emesa. Também para Apolinário e ao nosso Eustáquio, primeiro bispo de Antioquia que com sonora trombeta tocou o sinal de alarme contra Ario; e comprovei que, por diversas argumentações e rodeios, as opiniões de todos estes vinham parar na mesma encruzilhada de caminhos, a saber: que Melquisedeque foi um homem oriundo de Canaã, rei da cidade de Jerusalém, que ao princípio se chamou Salém, mais tarde Jebus, e por último Jerusalém. E não é de se estranhar que seja descrito como sacerdote do Deus Altíssimo, sem estar em relação com a circuncisão nem com as cerimônias legais, nem com a linhagem de Aarão, pois também Abel, Enoque e Noé agradaram à Deus e ofereceram sacrifícios; e no filhos. E acrescentam que o próprio não foi da linhagem de Leví, mas sim da estirpe de Esaú, por mais que os hebreus opinem de outro modo.

3. E assim como Noé, que se embriagou em sua casa, e foi despojado de suas vestimentas e escarnecido por seu filho mais velho, foi figura do Salvador e do povo judeu; e como Sansão, amante da meretriz e pobre Dalila, matou mais inimigos morto que vivo, como o que expressava a paixão de Cristo; e do mesmo modo que quase todos os santos, patriarcas e profetas reproduziram em algum pormenor a figura do Salvador, assim também Melquisedeque, pelo fato de ser cananeu e não de raça dos judeus, antecipou a figura do sacerdócio do Filho de Deus, de quem se diz no salmo cento e nove: Tu és sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedeque ( Sal 109,4). Esta ordem é interpretada de muitas maneiras: que só ele havia sido rei e por sua vez sacerdote, e havia exercido o sacerdócio antes da circuncisão, de maneira que não foram os gentios quem receberam o sacerdócio dos judeus, mas sim os judeus dos gentios, e que não havia sido ungido com óleo sacerdotal, como estabelecem os preceitos de Moisés (Lev 8, 10-12), mas sim com óleo de exultação e a pureza da ; que tampouco imolou vítimas de carne e sangue nem tomou em suas mãos as entranhas de animais brutos, mas sim com o pão e o vinho, sacrifício simples e puro, consagrou o mistério de Cristo. E assim, muitas outras interpretações pelo estilo, que não se dirão pela brevidade epistolar.

4. Ademais na carta aos Hebreus (Heb 7,1ss), que todos os gregos consideram-na canônica, e também alguns latinos, tem sido tratado por extenso que este Melquisedeque, isto é “rei justo”, foi o rei de Salém, quer dizer, “rei de paz”, sem pai nem mãe, e como se dava a entender esse último, se explica a continuação com uma só palavra: agenealogetos , “sem genealogia”; não porque não tivera pai nem mãe, dado que o próprio Cristo segundo sua dupla natureza teve pai e mãe, mas sim porque no Gênesis (Gen 14,18) se apresenta subitamente saindo ao encontro de Abraão, quando este volta da matança de seus inimigos, e nem antes nem depois se acha escrito seu nome. Afirma o Apóstolo que o sacerdócio de Aarão, quer dizer, do povo judeu, teve princípio e fim; mas o de Melquisedeque, quer dizer, o da Igreja de Cristo, é eterno no que toca ao passado e ao futuro, e não teve autor, e que, uma vez transferido o sacerdócio, muda também a lei, de sorte que em adiante a palavra do Senhor não sairá da escrava Agar, nem do monte Sinai, mas sim de Sara, a livre, e da cidadela de Sião, e a lei de Deus sairá de Jerusalém. E já no preâmbulo pondera a dificuldade do tema dizendo: Sobre o qual temos muitas coisas que dizer ainda que difíceis de explicar (Heb 5,11). Se o vaso de eleição fica atônito diante o mistério e reconhece que o tema de seu discurso é inefável, quanto mais nós, vermezinhos e pulgas, teremos de confessar o conhecimento de nosso desconhecimento e mostrar como por através de um pequeno buraco um magnífico palácio! Baste-nos dizer que os sacerdotes contrapostos pelo Apóstolo são do povo antigo e do novo. de uma coisa se trata toda dissertação: antes de Leví e de Aarão houve um sacerdote, Melquisedeque, proveniente da gentilidade, que se destacou tanto por seus méritos, que abençoou, nos costados de Abraão, aos futuros sacerdotes dos judeus. E tudo o que segue em louvor de Melquisedeque se refere a figura de Cristo, cujo desenvolvimento são os mistérios da Igreja.
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5. Isto é o que li nos volumes dos gregos, e em pequeno quadro quis pintar extensões imensas de terra não ampliando por extenso as opiniões e tratados, mas sim insinuando com alguns pontos e resumos infinitas coisas; de modo que por uma breve carta pudesses te inteirar do sentir de muitos. Mas já que perguntas com amabilidade, e meu dever é comunicar aos ouvidos piedosos tudo o que sei, vou te por também a opinião dos hebreus. E para que nada lhe falte para tua curiosidade, começo copiando-te as mesmas palavras do original que traduzido fica assim: “E Melquisedeque, rei de Salém, ofereceu pão e vinho, pois era sacerdote do Deus Altíssimo, e o abençoou dizendo: Abraão seja abençoado pelo Deus Altíssimo que criou o céu e a terra, e bendito seja o Deus Altíssimo, que pôs teus inimigos em tuas mãos; e lhe deu o dízimo de tudo.” Seguindo uma tradição, dizem que este personagem é Sem, o primeiro filho de Noé, o qual pelo tempo em que nasceu Abraão deveria ter trezentos e noventa anos de idade, que se calculam assim: Sem, no ano segundo após o dilúvio, aos cem anos de idade, engendrou a Arfaxat; depois do nascimento deste, viveu quinhentos anos, quer dizer, em total, seiscentos. Arfaxat, aos trinta e cinco anos de idade, engendrou a Heber, e deste lemos que, aos trinta e quatro anos de idade, engendrou a Faleg. Por sua vez Faleg, ao cumprir trinta anos, engendrou a Reu, quem no ano trinta e dois de seu nascimento, trouxe ao mundo a Serug, de quem, ao cumprir os trinta anos, saiu Nacor, quem aos seus vinte e nove anos de idade engendrou a Tare, de quem lemos que já septuagenário engendrou a Abrão, Nacor e Arão. Calcula por idade de cada um o número de anos, e verás que desde o nascimento de Sem até a geração de Abrão vão trezentos e noventa anos. Então: Abraão morreu aos cento e sessenta e cinco anos de idade. Feita a diminuição, resulta que Sem todavia sobreviveu trinta e cinco anos à Abraão, seu tataraneto em décimo grau.

6. É também tradição entre eles, que, até o sacerdócio de Aarão, todos os primogênitos da estirpe de Noé, cuja série e ordem se detalha, foram sacerdotes e imolaram vítimas a Deus, e estes haveriam sido os direitos de primogenitura que Esaú vendeu a seu irmão Jacó (Gen 25, 29-33). E não é de se estranhar que Melquisedeque saísse ao encontro de Abraão vitorioso, e lhe oferecera pão e vinho para refeição do mesmo e de seus combatentes, e o abençoou, pois tudo isso se lhe devia por direito de seu tataraneto; nem é de se estranhar que receba dele dízimos do saque e da vitória, ou melhor, posto que o sentido é ambíguo, que Melquisedeque lhe dê o dízimo de sua riqueza, demonstrando assim sua grandeza de avô com neto. Realmente, uma ou outra coisa são admissíveis tanto a partir do texto hebraico como da interpretação da Septuaginta: a saber, que Melquisedeque recebeu o dízimo do saque de guerra, ou bem que deu à Abraão os dízimos de sua riqueza. No entanto, o Apóstolo, na carta aos Hebreus, afirma clarissimamente que Abraão não recebeu o dízimo das riquezas, mas sim que foi o sacerdote quem recebeu parte dos despojos do inimigo.

7. Quanto à Salém, não é, como pensam Josefo e todos os outros, Jerusalém, nome composto do grego e do hebreu — mas que isto seja absurdo como mostra a própria mistura de duas línguas estranhas — , mas sim um povo perto de Escitópolis, que até hoje se chama Salém e no que se mostra o que foi o palácio de Melquisedeque, e a julgar por suas ruínas percebe-se a magnificência da obra antiga. de Salém escreve também em uma parte posterior do Gênesis: e Jacó partiu para Sukkot, quer dizer, para as tendas, e ali edificou casas para si e cabanas, e passou a Salém, cidade da região de Siquem, que está na terra de Canaã (Gen 33, 17-18).

8. Deve-se também ter-se em conta que, ao voltar Abraão da matança dos inimigos, aos que perseguiu até Dan, que hoje se chama Paneas, a cidade que poderia encontrar-se em seu caminho não era Jerusalém, que ficava fora de mão, mas sim um povo da metrópole, Siquem, o mesmo também do que lemos no Evangelho: e João batizava em Enom, perto de Salim, porque ali havia muita água (Jo 3,23). Não importa que se chame Salim ou Salém, pois em hebreu é raro que se escrevam os vocábulos no interior das palavras, e segundo a iniciativa do leitor e a variedade das regiões, as mesmas palavras se pronunciam com fonética e acento diferentes.

9. Isto é o que averiguei dos mais eruditos daquela nação que estão longe de admitir que Melquisedeque seja o Espírito Santo ou um anjo, que melhor lhe atribuem um nome certíssimo de homem. E, na verdade, é estúpido que o que foi dito em figura ( que o sacerdócio de Cristo não tem fim, que sendo ele mesmo rei e sacerdote, nos há concedido a dupla graça de ser estirpe régia e sacerdotal; e que como pedra angular tem unido os dois muros, e como bom pastor tem feito de dois rebanhos um só) alguns o reduzem à um sentido anagógico, até mesmo a ponto de reduzir em detrimento da verdade histórica, e nos querem fazer crer que não foi rei, mas sim um anjo que apareceu em forma humana; tanto mais que os hebreus se esforçam até tal ponto de demonstrar que Melquisedeque, rei de Salém, não era outro senão Sem o filho de Noé, que aduzem uma passagem anterior no que se diz: E o rei de Sodoma saiu ao seu encontro (não há dúvida: “de Abraão”) quando voltava de derrotar a Kedorlvamer e aos reis que com ele estavam no vale de Savé, ou seja, o vale do rei. E segue imediatamente: Então, Melquisedeque rei de Salém, apresentou pão e vinho (Gen 14, 17-18). Se esta é, pois, a cidade do rei e o vale do rei, ou, como traduziram na Septuaginta, o “simples”, que atualmente os palestinos chamam Aulão, é evidente que teve que ser um homem, que reinou em um vale e em uma cidade terrena.

10. Aqui tens o que ouvi e li sobre Melquisedeque. Para mim correspondeu citar aos testemunhos, a ti agora é sua vez de julgar da que mereçam. Se rechaça à todos, não aceitarás a esse teu exegeta espiritual, que tosco de língua e ciência, com tanto mal humor e autoridade afirmou que Melquisedeque é o Espírito Santo, que não fez senão demonstrar a verdade inteira do que cantam os gregos: “a ignorância da audácia; a ciência, temor”. Pelo que se refere à minha pessoa, depois de uma longa doença, apenas sim pelos dias da quaresma comecei a não ter febre, e como estava me preparando para outra obra, gastei no comentário de Mateus os poucos dias que me sobraram. E com tanto afã voltei aos estudos interrompidos, que o que foi proveitoso ao desentumecimento da língua danificou a saúde do corpo.