Isaac Sirio — Pequena Filocalia
Seleção de Jean Gouillard
As fases da purificação
A disciplina do corpo, aliada à tranqüilidade, purifica o corpo dos elementos materiais que ele encerra. A disciplina da alma torna a alma humilde; purifica-a dos movimentos materiais que a levam às coisas perecíveis, transformando-lhe a natureza apaixonada em movimentos de contemplação. Essa contemplação conduz a alma à nudez do intelecto, também chamada contemplação imaterial: é a disciplina espiritual. Ela eleva o intelecto acima das coisas terrenas e aproxima-o da contemplação espiritual primordial; ela dirige o intelecto para Deus, através da visão de sua glória inefável, e goza espiritualmente a esperança das coisas futuras, pensando detalhadamente no que serão.
Os esforços físicos levam o nome de disciplina corporal em Deus; pois, servem para purificar a alma através de um serviço perfeito, que se exprime em obras pessoais, destinadas a purificar o homem da podridão da carne.
A disciplina da alma é o trabalho ( ou o esforço ) do coração. É o pensamento contínuo do Juízo, acompanhado de uma constante oração do coração; sobre a providência de Deus, sobre o cuidado de Deus com este mundo, em detalhe e no conjunto. É ainda uma atenção ao domínio das paixões da alma, para impedi-las de se introduzirem no lugar secreto e espiritual. Esse é o trabalho do coração ou disciplina da alma… ( Wensinck XI, p. 202; cf. P.G. t. 86, c. 872 ).
A pureza do coração é o estar limpo de toda mancha; a pureza da alma é o estar livre de toda paixão escondida no espírito; a pureza do intelecto é o estar purificado pela revelação de toda emoção pelas coisas que caem sob o domínio dos sentidos. ( Wensinck XL, p. 204; P.G. t. 86, c. 874c ).
Há, entre a pureza do intelecto e a pureza do coração, a mesma diferença existente entre um membro do corpo, particularmente, e o corpo em seu conjunto. O coração é o órgão central dos sentidos interiores, o sentido dos sentidos, porque ele é a raiz. “Se as raízes são santas, os ramos também o serão” ( Rm 11,16 ). Mas as raízes não serão santas, se apenas um galho o for.
Ora, com a utilização modesta da Escritura, aliada a uma certa prática do jejum e da solidão ( hesychia ), o intelecto esquece sua antiga ocupação e é purificado ao resistir a seus costumes estranhos. Mas também, muito pouca coisa é necessária para maculá-lo. O coração, por sua vez, purifica-se à custa de grandes esforços, através da privação de toda convivência com o mundo e por meio da mortificação universal. Mas, uma vez puro, sua pureza não é mais maculada pelo contacto com as coisas insignificantes; sabei que ele não teme nem mesmo os compromissos severos ( Wensinck III, p. 20 ).
Lembrança de Deus
Lembrai-vos, pois, de Deus, para que ele se lembre incessantemente de vós; lembrando-se de vós, ele vos salvará e vós recebereis todos os seus bens. Não o esqueçais em vãs distrações, se não quiserdes que ele vos esqueça na hora de vossas tentações.
Na prosperidade, permanecei a seu lado, na obediência: tereis assim firmeza de palavra diante dele quando estiverdes no infortúnio, pelo fato de vossa oração vos manter, sem cessar, junto dele em vosso coração. Conservai-vos continuamente diante de sua face, pensando nele, lembrando-vos dele em vosso coração; senão, vendo-o apenas de quando em quando, correis o risco de não vos sentirdes seguros com ele, em conseqüência de vossa timidez. A relação contínua, ao contrário, consegue um alto grau de segurança. A relação contínua, nos homens, é exercida pela presença corporal; a relação contínua com Deus é uma meditação da alma e uma oferenda na oração. ( Wensinck V, p. 50 ).
Quando a força do vinho penetra nas veias, o intelecto esquece os detalhes e a distinção das coisas; quando a lembrança de Deus se apossa da alma, a lembrança das coisas visíveis desaparece do coração. ( Wensinck XLV, p. 217 ).
O coração de quem examina a própria alma a todo instante goza das revelações. Quem recolhe a contemplação no interior de si mesmo, contempla o brilho do Espírito; quem desprezou a dissipação, contempla o seu Senhor dentro do próprio coração. Quem quer ver c Senhor, aplica-se em purificar o coração, por uma lembrança ininterrupta de Deus. Desse modo, verá o Senhor a todo momento, no brilho de seu intelecto. Como peixe fora d’água, procede o intelecto que sai da lembrança de Deus e se deixa levar pela lembrança do mundo. ( P.G. t. 86, c. 885c ).
A melhor parte
Feliz o que compreende isso e persevera na paz, mesmo sem se submeter a toda espécie de trabalhoes, mas troca c serviço corporal pela obra da oração, se for capaz. Quem for incapaz de suportar a solidão sem recorrer ao serviço, deverá então recorrer ao serviço. Mas, que se entregue a ele como a um acessório, como a uma coisa secundária, e não como a uma prescrição essencial; isto é, sem desvelo. Isso para os fracos. Evágrio disse que o trabalho manual é um obstáculo à lembrança de Deus…
Quando Deus abre por dentro o teu intelecto e fazes genuflexões repetidas, não deixes nenhum pensamento apossar-se de ti, para que os demônios não te convençam secretamente a pô-lo em prática; depois, considera e admira o que nasce em ti dessas coisas.
Toma cuidado para não comparares nenhuma das práticas morais ( vida ativa ) com tuas prostrações diurnas e noturnas, face em terra, diante da cruz, mãos atrás das costas. Se desejas que teu fervor não enfraqueça nunca, que tuas lágrimas não deixem de correr, pratica isso… E serás igual a um paraíso florido e a uma fonte inexaurível.
Considera agora as numerosas provas da graça que a Providência traz ao homem. Às vezes um homem está ajoelhado em oração, as mãos abertas ou erguidas para o céu, o rosto voltado para a cruz, o sentimento e o intelecto, por assim dizer, inteiramente dirigidos para Deus e para a súplica. Enquanto ele está absorvido por suas súplicas e esforços, bruscamente se abre em seu coração uma fonte de delícias; os membros se relaxam, os olhos se turvam, o rosto pende para o chão; mesmo os joelhos não são mais capazes de se apoiar no solo, por causa da alegria e da exultação da graça que se espalha em seu corpo. ( P.G. t. 86, c. 819; Wensinck IV, 40 ).
A oração
O que é a oração? É um intelecto livre de tudo o que é terreno e um coração cujo olhar se fixa exclusivamente no objeto da esperança. Afastar-se disso é imitar o homem que espalha em seus campos sementes misturadas, ou que lavra a terra com uma parelha composta de um boi e de um burro. ( Wensinck, LXXIV, 341 ).
A oração sem distração é a que produz na alma o pensamento constante de Deus. Nova encarnação: Deus habita em nós por meio de nosso constante recolhimento nele, acompanhado de uma aplicação trabalhoiosa do coração em procurar sua vontade. Os maus pensamentos involuntários têm origem num afrouxamento anterior. (Wensinck L, 237 ).
O que é a oração espiritual? Há oração espiritual quando os movimentos da alma sofrem a ação do Espírito Santo, em conseqüência de sua verdadeira pureza. Um homem, em dez mil, recebe esse favor. Essa oração é o símbolo de nossa futura condição, pois a natureza é elevada acima de todos os movimentos impuros, inspirados pela lembrança das coisas deste mundo… É a visão interior… cujo ponto de partida é a oração. ( Wensinck XXXV, 174 ).
Em que consiste o apogeu dos trabalhoes da ascese? Como reconhecer que se atingiu o termo do percurso? ( O termo é atingido ) quando se foi julgado digno da oração constante. Quem a conseguiu, atingiu o fim de todas as virtudes e tem, pelo mesmo fato, uma morada espiritual. Quem, em verdade, não recebeu o dom do Paráclito, é incapaz de realizar a oração ininterrupta durante o repouso. Quando o Espírito estabelece sua morada num homem, este não pode mais parar de orar, porque o Espírito não cessa de orar nele. Quer esteja dormindo, quer esteja velando, a oração não se separa de sua alma. Enquanto ele come, enquanto bebe, quer esteja deitado, quer esteja trabalhando ou mergulhado no sono, o perfume da oração exala espontaneamente de sua alma. Daí em diante, ele não domina a oração, não apenas durante períodos de tempo determinados, mas sempre. Mesmo quando ele está em repouso visível, a oração é indubitável nele, secretamente, pois “o silêncio do impassível é uma oração”, disse um homem revestido de Cristo. Os pensamentos são moções divinas; os movimentos do intelecto purificado são vozes mudas que cantam em segredo essa salmodia ao Invisível. ( Wensinck XXXV, 174 ).
Se chegardes a unir a meditação das vossas noites cem o serviço dos vossos dias, sem desdobrar o fervor das operações do coração, não tardareis a abraçar o peito de Jesus…” Este é o meu conselho: ficai em paz e acordados, se puderdes, sem recitação de salmos, nem prostrações, se conseguirdes, orai unicamente em vosso coração. Mas, não dormir! ( Wensinck XVII, 93 ).
Graus da oração
A graça age diversamente nos homens, conforme a medida destes. Um multiplica o número das orações, sob o efeito de um ardente fervor; outro consegue um tal repouso da alma, que reduz à unidade a multiplicidade de suas orações anteriores. ( Wensinck XV, p. 88 ).
Não se deve confundir júbilo na oração, com visão na oração: a segunda vence o primeiro, tanto quanto um homem a um rapazinho. Acontece que as palavras assumem uma suavidade singular na boca e que repetis interminavelmente a mesma palavra da oração, sem que nenhum sentimento de saciedade vos faça continuar e passar à palavra seguinte.
Às vezes a oração gera uma certa contemplação que a faz dissipar-se nos lábios. Aquele a quem sobrevém tal contemplação, entra em êxtase, e se torna igual a um corpo que a alma tivesse deixado. É o que chamamos visão na oração e não uma imagem ou uma forma fabricada pela imaginação, como afirmam os tolos.
Essa contemplação na oração tem, por sua vez, graus e dons diferentes. Mas, até aí, trata-se de uma oração, pois o pensamento ainda não passou ao estado em que não há mais oração, mas sim estado superior a ela. Os movimentos da língua e do coração, durante a oração, são chaves. Vem depois a entrada no quarto. Aí, a boca, os lábios, se calam; o coração, o camareiro dos pensamentos, a razão que reina sobre os sentidos, o espírito, esse pássaro veloz, com todos os seus meios e faculdades e com suas súplicas, só têm que se manter calados, pois o dono da casa entrou.
A autoridade das leis e dos mandamentos promulgados por Deus, para a humanidade, tem seu termo na pureza do coração, conforme a palavra dos santos Padres. Do mesmo modo, todas as formas e atitudes de oração, nas quais o homem se dirige a Deus, têm seu termo na oração pura… Logo que o espírito tiver atravessado a fronteira da oração pura e tiver penetrado para além, não haverá mais, nem oração, nem emoções, nem lágrimas, nem autoridade, nem liberdade, nem súplicas, nem desejo, nem impaciente esperança para este mundo ou para o outro. Não há, pois, oração para além da oração pura… Atravessando esse limite, entra-se no êxtase; já não se estará nas orações. É a visão: o espírito não ora mais…
Dificilmente se encontraria, em dez mil homens, um que tivesse cumprido os mandamentos e as leis em dimensão apreciável e que tivesse sido julgado digno da tranqüilidade da alma. Não é menos raro encontrar, numa multidão, um homem cuja vigilância perseverante tivesse merecido a oração pura… Mas quanto ao mistério que está para além, dificilmente se encontraria, em toda uma geração, um homem que se tivesse aproximado desse conhecimento (gnosis — episteme) da glória de Deus… O objeto da oração é esquecido. Os movimentos se afogam numa profunda embriaguez; não se é mais deste mundo. É a ignorância bem conhecida, de que disse Evágrio: “Bem-aventurado aquele que, na oração, chegou ao não-saber, que é impossível ultrapassar”. ( Wensinck XXII, 111-118 ).
Agora é o momento de explicar o que dissemos acima, quanto ao gozo espiritual. No início, é uma energia indeterminada que o amor desperta no coração, sem causas aparentes. Pois, ele dá impulso ao temperamento sem visão pessoal, sem pensamento prático. Acha-se que é desprovido de causa; o intelecto ainda está vazio.
É a impressão produzida no indivíduo pouco experiente. Quando ele for perfeito, a causa se revelará no exame. Então, a impressão será mais forte, pois o gozo se manifestará no coração. O indivíduo guardará uma parte dele no corpo, enquanto enviará outra às faculdades da alma. Porque o coração fica no meio, entre os sentidos da alma e os do corpo. Com a alma, tem uma relação de órgão; com o corpo, uma relação de natureza. O indivíduo dirige o gosto de sua ação para os dois lados. Assim, o mundo é forçado a separar-se dele, da mesma maneira que ele se separa das coisas deste mundo. Devemos necessariamente examinar a causa desse fenômeno. O amor é algo de quente por natureza. Quando ele se lança violentamente sobre alguém, torna-lhe a alma como louca. O coração que o sente não pode, pois, contê-lo mais, nem suportá-lo, sem que apareçam nele alterações insólitas e excessivas. E esses sinais o anunciam sensivelmente: de súbito o rosto se torna rubro e irradiante, o corpo se aquece, o temor e a timidez são expulsos, o poder de concentração foge: é o reino de entusiasmo e da perturbação ( Wensinck XXXIII, 148 ).
O périplo da oração
O navegador, enquanto navega, tem os olhos nas estrelas, regula por elas o movimento do seu barco e espera que elas mostrem o caminho para o porto. O monge tem os olhos na oração: ela dirige o seu caminhar rumo ao porto imposto ao seu percurso. O monge não cessa de dirigir o olhar para a oração, para que ela lhe mostre a ilha onde lançar âncora, sem riscos no embarque de provisões, antes de apontar para outra ilha. Esse é o trajeto do solitário, enquanto é deste mundo. Troca uma ilha por outra: os diversos conhecimentos que encontra são outras tantas ilhas, até atracar, afinal, e dirigir seus passos para a Cidade da verdade, cujos habitantes não negociam mais, e onde cada um é saciado com o que tem. Bem-aventurados aqueles cuja viagem transcorre sem inquietação através do vasto oceano. ( Wensinck XLV, 218 ).